Uma improvável relação

Roberto Jardim
9 min readJul 8, 2022

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Giuseppe Garibaldi, o Herói de Dois Mundos, e sua camisa vermelha

POR ROBERTO JARDIM
bobgarden@gmail.com
@bobbgarden

É bem possível que gaúchos, catarinense, uruguaios e italianos não esperassem por essa. Afinal, quem iria pensar que Giuseppe Garibaldi, conhecido Herói de Dois Mundos, por se envolver em revoluções tanto na América e quanto na Europa, e biografado pelo afamado escritor Alexandre Dumas, tivesse uma ligação com o futebol?

Pelos gentílicos citados, dá até para pensar em algo no Rio Grande do Sul, em Santa Catarina, no Uruguai ou, até mesmo, na Itália, não é? Pois não podemos estar mais errados. Afinal, esse revolucionário teria inspirado os fundadores de um clube inglês e, recentemente, dado nome a uma das suas torcidas organizadas.

Isso mesmo! A inesperada relação se dá com Nottingham Forest, que fez história na Premier League, antes de ela ter esse nome, e que voltou à Primeira Divisão inglesa após 23 anos, no final da temporada 2021/2022.

Antes de falar desses laços, porém, é preciso voltar várias décadas para tentar entender essa imponderável relação.

Entrando no túnel do tempo

Bom, então, que tal desembarcar no Reino Unido em meados do século XIX, quase no fim da Revolução Industrial? Se você, caro leitor que chegou até aqui, não faltou às aulas de História, sabe que entre 1760 e 1840 mudanças extremas afetaram a economia mundial, com o grande salto do capitalismo ocidental.

Também deve recordar que a Inglaterra foi o berço e principal símbolo dessa época. Afinal, a ilha tinha reservas significativas de ferro e de carvão mineral, as duas das principais matérias-primas desse boom. Além, claro, de mão-de-obra em abundância: os milhares de camponeses que migraram do campo para os centros urbanos.

Operários na fase final da Revolução Industrial

Somam-se à essa equação os burgueses britânicos com dinheiro suficiente para financiar fábricas, adquirir as matérias-primas e máquinas, e contratar, a salários baixíssimos e condições precárias, os empregados. Assim, nesses 80 anos de expansão, as grandes cidades do Reino Unido ficaram repletas de indústrias.

Nesse contexto, uma nova luta de classes surgiu, tendo o proletariado, os operários das fábricas, de um lado, e os proprietários dos meios de produção, de outro. Em meio a esse caldo, inúmeras teorias político-social-econômicas se desenvolveram ou surgiram, principalmente o socialismo, o comunismo e o anarquismo.

Tá, mas o que isso tem a ver com Garibaldi e o futebol, afinal? Calma, que estamos chegando lá.

Primeiro, o Herói de Dois Mundos

Enquanto parte da Europa e da América do Norte se desenvolviam industrialmente, o restante do mundo vivia sob conflitos constantes. No Sul do Velho Continente, por exemplo, alguns revolucionários sonhavam em reunir diversos Estados submetidos a potências estrangeiras no que se tornaria a Itália.

Um desses Estados era o Reino da Sardenha, onde ficava a cidade Nice. Foi ali, nesse protetorado francês, que nasceu, em 1807, Giuseppe Garibaldi. Apesar de o pai, dono de uma embarcação, não querer que seu segundo filho fosse marinheiro, o espírito aventureiro do garoto o levou a singrar os mares.

Numa das suas viagens, tomou contato com as ideias do francês Henri Saint-Simon, tido como um dos pais do socialismo — ideologia que o acompanharia em boa parte da vida. Em seguida, entrou para duas sociedades secretas: a Jovem Itália, que defendia a unificação do país; e a Carbonária, que tinha valores patrióticos e libertários.

Com essa última, participou de uma fracassada insurreição em Gênova, pela qual acabou preso. Mesmo condenado à morte, fugiu para Marselha, atravessou o Mediterrâneo, até a Tunísia, e veio desembarcar no Brasil, em 1835. No Rio, conheceu Bento Gonçalves e se uniu a ele na Revolução Farroupilha, que duraria até 1845.

Além da luta pela separação do Rio Grande do Sul, também participou da Revolução Juliana, em 1839, em Santa Catarina. Foi ali, em Laguna, que conheceu sua esposa, a também revolucionária Anita. Depois de diversas peripécias por aqui, como levar dois lanchões por terra por diversos quilômetros, mudou-se para Montevidéu.

Garibaldi (de cavalo) em batalha da Guerra Civil Uruguaia (1839–1952)

Chegou à capital do Uruguai em 1841. Não demorou muito a se envolver na Guerra Civil que havia começado em 1839 — e se estenderia até 1852. Logo entrou paras as tropas coloradas. Foi ali que os soldados comandados por ele passaram a usar camisas vermelhas (reserve essa informação).

Esse elemento invadiu o imaginário popular como símbolo de coragem e dedicação às causas patrióticas. Conforme historiadores, é provável que essa marca dos comandados por Garibaldi tenha surgido a partir de uma remessa de um tecido rubro que tinha como destino os matadouros uruguaios.

O material seria destinado a peões das fazendas de produção de charque nos arredores de Montevidéu. O italiano interceptou o produto, que comprou a baixo custo. De acordo com os relatos, a cor teria agradado o revolucionário porque não revelaria feridas surgidas no campo de batalha, já que o tom era muito próximo do sangue.

Sete anos depois, ainda em meio ao conflito charrua, em 1848, Garibaldi decidiu voltar à Itália, para retomar sua participação na luta pela reunificação do país. Para isso, ele liderou o Risorgimento, um dos batalhões que participaram da disputa. Levou consigo alguns homens e as características camisas vermelhas.

Garibaldi acabou participando de três tentativas de unificar a Itália — o que só aconteceu efetivamente em 1870. Em meio às batalhas, negociações e exílios, ainda se voluntariou a participar da Guerra da Secessão (1861–1869), nos EUA, e participou da defesa da Terceira República da França, na Guerra Franco-Prussiana (1870–1871).

Agora, o futebol

Ele também visitou o Reino Unido, em 1864 (reserve para depois), apenas 16 anos após a criação das primeiras regras do futebol. Pois é, vale lembrar que foi no meio a esse cenário todo — das revoluções Industrial, Farroupilha e Juliana e na Itália — que o futebol como conhecemos hoje começou a tomar forma.

Se você se interessa, bem sabe que a História nos apresenta diversos registros do jogo de bola desde a China dos anos 2.100 a.C. Foi em meio à reta final da expansão do capitalismo, no entanto, que o esporte começou a ficar parecido com o praticado hoje em dia.

O futebol moderno começou a tomar forma em 1848

Apenas em 1848, o futebol e o rúgbi se dividiram. Naquele ano, jogadores da Universidade de Cambridge convocaram colegas de outros times para criarem o primeiro código de regras do ludopédio. Depois, vieram ainda algumas mudanças, mas só em 1863, por exemplo, as mãos deixaram de serem usadas para carregar a bola.

Nessa época, o jogo já não era praticado apenas por universitários ou alunos dos colégios da elite britânica. Ele já havia se popularizado e caído no gosto da maioria da população da ilha. Ou seja, já era admirado e praticado pelos homens que faziam parte da imensa massa proletária surgida na Revolução Industrial.

Alguns dos times foram criados para descontração nas tardes de sábado, após o fim da semana árdua de trabalho. Naquele período, os operários trabalhavam até 16 horas de segunda a sexta, mais meio turno aos sábados. Antes de se apaixonarem pela bola, a diversão era ir para um pub e encher a cara.

Depois, alguns pegaram gosto pelo jogo. Disso começaram a surgir equipes mais organizadas e os primeiros clubes. Foi o que aconteceu em Nottingham, nas Midlands. Em 1865, um grupo de 15 jovens resolveu montar um quadro. Como a região era conhecida pela floresta de Sherwood, eles escolheram o nome de Nottingham Forest.

Tá, e aí?

Lembra que falamos da visita de Garibaldi à Inglaterra? Então, sua passagem por lá era esperada em várias cidades. Trabalhadores e estudantes de diversas organizações sociais prepararam encontros para ouvir as histórias e, principalmente, as ideias do Herói de Dois Mundos. Nottingham, um dos centros industriais das Midlands, estaria no roteiro.

A Coroa, porém, não permitiu que ele saísse de Londres. Afinal, o italiano era antimonarquista ferrenho, e a rainha Vitória não abriria as portas do seu reino a um revolucionário como ele. Assim, Garibaldi teria tido uma série de encontros, além de participar de um evento na Trafalgar Square.

Artista desconhecido pintou a ida de Garibaldi à Trafalgar Square

Reza a lenda que um grupo de jovens de Nottingham foi até a capital para ver o revolucionário. Não há registros do encontro, assim como não há confirmação se algum desses rapazes ajudou a fundar o Forest. Uma coisa é certa, no entanto, tendo apoio dos operários da cidade, a cor escolhida para o time tinha um nome específico da paleta da confecção: red Garibaldi.

Ou, no bom português, “vermelho Garibaldi”. Pois, lembra que pedimos para você reservar a informação das camisas usadas pelo batalhão comandado por ele no Uruguai? Sim, o rubro uniforme dos matadouros montivedenos ficou mundialmente famoso e virou um tipo de específico de cor, escolhido pelos fundadores do Forest.

The Reds nos primeiros tempos

Uma das teorias, jamais confirmada, cita que os tecidos dessa coloração, que caíram no agrado do revolucionário, eram produzidos em uma das tecelagens de Nottingham. Por isso, o vermelho forte teria ficado conhecido na cidade como red Garibaldi, virando, assim, a cor da camisa do time fundado em 1865.

Vale assinalar que o corte da camisa dos soldados de Garibaldi também ganhou o mundo da moda. O talhe agradou as mulheres, com as camisas ficando conhecidas como garibaldinas. Elas também chegaram aos EUA, onde um batalhão do Exército norte-americano passou a usar a vestimenta.

É só isso?

Bom, anos mais tarde, o Nottingham Forest, também conhecidos como The Reds, entraria para a história com uma das maiores façanhas do futebol inglês. Clube mediano, ele amargava a Segunda Divisão em 1975, quando o técnico Brian Clough chegou à cidade. Em seguida, conquistou o acesso na temporada 1976/1977.

Já no retorno à Primeira Divisão (1977/1978), levantou a taça de campeão — feito inédito até hoje. Ainda venceria a Copa e a Supercopa da Inglaterra. Na etapa seguinte, 1978/1979, chegaria em primeiro na Liga dos Campeões e levantaria a segunda Copa da Inglaterra. E ainda se tornaria bicampeão do continente em 1979/1980.

Brian Clough e a orelhuda, a taça da Liga dos Campeões, que conquistou em 1978/1979 e 1979/1980

Depois, voltaria a sofrer uma série de descensos e acessos, até que ficou 23 anos na Segunda Divisão. O retorno à elite foi confirmando no final de maio de 2022, após a vitória de 1 a 0 sobre o Huddersfield, em Wembley.

E a torcida, onde entra?

Bom, ainda hoje, Garibaldi continua a ter impacto na vida da cidade das Midlands. Tanto que, um ano após aniversário dos 150 anos dos Reds, comemorados em 2015, um grupo de torcedores criou uma nova organizada: o Forza Garibaldi. Os fundadores sentiam que o italiano era uma parte importante da história do Forest.

A bandeira da torcida na cor “red Garibaldi”

Acreditavam que usar o nome de Garibaldi era uma maneira eficaz de promover uma ligação com as origens do clube. Ao mesmo tempo em que tenta promover uma atmosfera mais positiva nas arquibancadas, cria espetáculos visuais no City Ground, estádio com capacidade para 30 mil pessoas, nos contou Matt Oldroy, por e-mail

Financiada e organizada por seus seguidores, as exibições têm tido cada vez mais participantes. Uma das mais recentes envolveu 16 mil homens, mulheres e crianças.

Uma das ações da Forza Garibaldi

E em Nice, nada?

Bom, antes de terminar, vale registrar que, como bem sabemos, o futebol também é popular na França, onde fica Nice, terra natal do Herói dos Dois Mundos, e na Itália, pela qual lutou pela unificação. Aí, pode surgir uma pergunta, em nenhum desses lugares existe alguma conexão de Garibaldi com a bola?

O que descobrimos é que, na sua Nice, agremiação que leva o nome da cidade joga a Ligue 1, a primeira divisão francesa, no Allianz Riviera Stadium, que tem, desde 2013, um setor denominado Giuseppe Garibaldi. Já na Itália, o Pisa, da Segundona italiana, manda suas partidas na Arena Garibaldi. Nada além disso.

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Roberto Jardim

Jornalista, dublê de escritor e pai da Antônia. Tudo isso ao mesmo tempo, não necessariamente nessa ordem. @Democracia_FC