O vale tudo por dinheiro da bola

Roberto Jardim
4 min readAug 15, 2023

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POR ROBERTO JARDIM
bobgarden@gmail.com
@bobbgarden

O uso dos esportes para lavar a imagem de um governo chegou ao seu auge na temporada atual de transferências do futebol da Arábia Saudita. A notícia mais atual é o acerto de Neymar com o Al-Hilal, depois de seis anos no PSG a serviço de outra monarquia árabe, a do Qatar.

A lista recente de contratações por clubes sauditas é bem chamativa. Vamos a alguns nomes:

  • o atacante brasileiro Roberto Frimino e o goleiro senegalês Edouard Mendy trocaram, respectivamente, Liverpool e Chelsea, pelo Al-Ahli;
Benzema na sua chegada ao Al-Itthad. Foto: divulgação
  • o francês Karim Benzema, saiu do Real Madrid para jogar pelo Al-Itthad;
Sadio Mané em foto de divulgação do Al-Nassr
  • o senegalês Sadio Mané, Bayern Munique, e o técnico português Luís Castro, Botafogo, se uniram a Cristiano Ronaldo no Al-Nassr.
CR7 na sua apresentação no Al-Nassr. Foto: divulgação

Sem contar a compra do Newscastle, em 2021, e a contratação do argentino Lionel Messi como garoto propaganda do turismo local. Além de eventos de motocross, golfe e automobilismo. Todo esse aposte tem um objetivo. E ele é muito claro aos olhos de quem não vê o futebol apenas como futebol.

Trata-se, isso sim, de uma grande jogada de geopolítica para tentar apagar uma série de questões político-sociais. E ela passa, na mais recente jogada, pela transmissão das partidas com grandes craques para todo o mundo — já tem streaming oferecendo o Sauditão para o Brasil.

E talvez não pare por aí. Afinal, o rei Saud bin Salman Al-Saud, de 37 anos, tem uma montanha de petrodólares para investir em sportswashing e ainda quer levar a Copa do Mundo para lá.

Aqui vale um parêntese. O termo sportswashing é atual, mas a prática é antiga. Começou talvez, na realização da Copa do Mundo de 1934, na Itália, quando Benito Mussolini quis mostrar, dentro da sua cartilha fascista, uma nação superior ao mundo. Depois, em 1936, Adolf Hitler fez o mesmo, na sua cartilha nazista, com os Jogos Olímpicos de Berlim. A América do Sul não fica longe, com a última e mais sangrenta das ditaduras da Argentina usando a Copa do Mundo de 1978 para passar — ou, pelo menos, tentar — uma imagem irreal ao planeta, bem como conquistar a taça de uma forma, no mínimo, suspeita.

Também é bem provável que esses movimentos de melhora de reputação por meio dos esportes não fiquem somente na Arábia. Não nos esqueçamos que o Qatar, além de ser dono do PSG, já teve uma Copa do Mundo, e Dubai organiza provas de Fórmula-1.

O que eles querem “lavar”?

Vale destacar, porém, que os países da região não são nada democráticos — e aqui falamos além de apenas colocar o voto na urna. Para ficar só na nação de Al-Saud, é possível listar algumas das políticas antidemocráticas do governo:

  • pena de morte para homossexuais;
  • as mulheres não têm quase nenhum direito;
  • prisão de qualquer tipo de ativistas;
  • perseguição de opositores e minorias;
  • falta de liberdade de impressa, de religião e de expressão;
  • expulsão de refugiados.

E tem mais!

A Arábia se envolveu diretamente na guerra civil do Iêmen, iniciada em 2014. Os sauditas apoiam a coalizão do governo local no conflito que pouco aparece na mídia nacional e mundial. É importante, no entanto, falar um pouco dela para explicar o que mais Al-Saud tem a esconder.

Relatórios de ONGs de direitos humanos indicam que o conflito já causou quase 400 mil mortes. Os grupos envolvidos — de um lado, o governo sunita, de outro, a minoria Houti, apoiada pelo Irã — também são acusados de crimes de guerra como estupro e tortura.

É muita sugeira para limpar, né? Só que não para por aí.

Al-Saud também é o responsável pela morte do jornalista Jamal Khashoggi, em 2018. Crítico do governo do seu país, ele foi sequestrado em Istambul, na Turquia, e levado para a embaixada saudita. Lá mesmo, a mando do monarca, foi esquartejado ainda vivo, começando pelos dedos dos pés.

É toda essa lista que o investimentos nos clubes locais quer lavar, apagar ou, ao menos, deixar de lado — bem de lado — ante a opinião pública mundial. Afinal, muita gente ainda acredita que o futebol é o ópio do povo. E, infelizmente, para aqueles que não ligam lé com cré acaba sendo.

Como sempre diz, porém, o historiador e cientista político uruguaio Gerardo Caetano:

“Quem diz que futebol e política não se misturam, ou não sabe de nada ou sabe demais”.

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Roberto Jardim

Jornalista, dublê de escritor e pai da Antônia. Tudo isso ao mesmo tempo, não necessariamente nessa ordem. @Democracia_FC