O Imperador do Futebol

Roberto Jardim
3 min readMar 13, 2024

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Luís Matoso, o Feitiço, com a seleção paulista

POR ROBERTO JARDIM
bobgarden@gmail.com
@bobbgarden

Quem observasse Luís Matoso fora de campo não imaginaria o tamanho que teve no futebol. Como tantos irmãos de cor de sua época era obrigado pelo racismo aberto a andar de cabeça baixa, fala quase inaudível — “Sim, senhor. Não, senhor”. Luís mal sabia escrever. Para assinar seu nome na súmula lá se iam uns bons cinco minutos.

Em campo porém, aquele paulistano nascido em 1901 se transformava. Tanto que ganhou o apelido de Imperador do Futebol. Na carreira de 13 anos, marcou 414 gols. Cem deles em 16 partidas vestindo a camisa do Santos, em 1927. Antes de Pelé, foi artilheiro três anos seguidos do Paulista. Duas vezes — 1923/24/25 e 1929/30/31.

Corajoso, raçudo e exímio cabeceador, era conhecido nas canchas como Feitiço, tamanho a magia que exercia com a bola. Jogou quatro partidas pela Seleção Brasileira, marcando seis gols. Também defendeu a seleção paulista, pela qual atuou oito vezes, colocando 16 bolas na rede.

Feitiço com o uniforme do Santos, que defendeu de 1926 a 1933

E foi numa dessas partidas, em 13 de novembro de 1927, que ele mostrou quem realmente era. Muito antes de João Saldanha encarar o ditador Emílio Garrastazu Médici, ele fez o mesmo com o presidente Washington Luís. Quatro décadas separam a fala de João Sem Medo — “Médici escala o ministério, eu convoco a seleção” –, do que Feitiço fez em São Januário.

A casa do Vasco, inaugurada em abril daquele ano, estava lotada para assistir a um Rio x São Paulo. Os dois escretes se enfrentavam em amistoso, que recebia na tribuna o chefe do Executivo. Craque do Santos, Luís defendia, claro, o time paulista. A torcida estava em alvoroço com a presença do mandatário.

O jogo rolando, bola pra lá, bola pra cá, e o árbitro marca um pênalti para os fluminenses. Com tecnologias como o VAR a léguas de distância no tempo, não havia como contestar. Mas a equipe visitante o fez mesmo assim. A partida parou, paulistas cercando o juiz. Confusão em campo.

Indignado com o que via, o presidente mandou o oficial de gabinete ao gramado com uma ordem: que deixassem de frescura e recomeçassem o confronto, determinou o servidor. De cara amarrada e armado de sua coragem, Feitiço disse não.

Negro, semianalfabeto, ele peitou uma ordem presidencial. Disse que Washington Luís mandava lá em cima. Ali, mandava ele. O “lá em cima” significava a tribuna e, também, o país. O “ali”, o campo. Para mostrar que não brincava, fez um sinal para os colegas de seleção e todos se retiraram.

Uma afronta ao presidente e à CBD, que organizara o amistoso. O mandatário não teve outra coisa a fazer do que ir embora, conta o jornalista Mario Filho em O Negro no Futebol Brasileiro.

Enquanto isso, o órgão máximo do esporte brasileiro prometia punições. Do quíper (como a imprensa então chamava o goleiro) ao ponta-esquerda, seriam todos expulsos para sempre.

A confederação, no entanto, precisava de São Paulo, dos seus clubes e de seus jogadores. Assim, uma hora depois, a punição havia sido reduzida para oito boleiros. Um dia depois, para cinco. Um mês depois, nenhum.

Feitiço jogou no Uruguaii de 1933 a 1936, defendendo o Peñarol

Feitiço seguiu encantando com sua magia. Depois de atuar de 1926 a 1933 pelo Peixe, passou por Corinthians (1931 e 1932), Peñarol de Montevidéu (1933 a 1936), Vasco (1936 e 1937), Palestra Itália (1938) e São Cristóvão (1940). Após se despedir da bola, atuou como árbitro. Morreu em São Paulo em 23 de agosto de 1985.

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Roberto Jardim

Jornalista, dublê de escritor e pai da Antônia. Tudo isso ao mesmo tempo, não necessariamente nessa ordem. @Democracia_FC