Democracia Fútbol Club
POR ROBERTO JARDIM
bobgarden@gmail.com
@bobbgarden
D e clubes politicamente engajados quase todo mundo já ouviu falar de algum. Afinal, o alemão FC Sankt Pauli, de Hamburgo, é conhecido no mundo todo por ter um estatuto no qual se autodetermina uma agremiação antinazista, antifascista, antirracista e anti-homofóbica. Enfim, um quadro aberto a todos, menos aos preconceituosos e antidemocratas.
Além da equipe que em 2018 disputa a segunda divisão alemã, também é conhecida a história do uruguaio Defensor Sporting Club, de Montevidéu. Isso porque o time teve a empáfia de conquistar um título nacional em plena ditadura, criando a volta olímpica ao contrário como forma de protesto. O gesto é até hoje cantado pela torcida, que declara o clube como o único antissistema do futebol charrua.
Ainda temos o único time proletário do futebol mundial a conquistar uma competição continental. No início dos anos 80, o IFK Göteberg, comandado por Sven-Goran Eriksson, tinha um estilo de jogo vistoso e um quadro formado, praticamente, por trabalhadores braçais, muitos deles politicamente engajados. Com uma estrutura quase amadora, a equipe levantou a Copa da Uefa (hoje transformada em Liga Europa, segunda competição interclubes mais importante da Europa), em 1982.
Um time engajado, seria possível?
O s exemplos acima são bons, mas seria possível formar uma equipe, do 1 ao 11, toda com os jogadores politicamente engajados? Pelo menos por aqueles que defendem a democracia, a liberdade e são contra preconceitos e injustiças? E ainda com um técnico na mesma linha?
Dificilmente seria possível encontrar uma seleção dessas nos tempos atuais. Afinal, contratos de marketing praticamente tornaram o futebol acéfalo, politicamente falando — isso porque os poderosos que determinam a “neutralidade” não a veem como um gesto político, também. Hoje, os boleiros só se manifestam sobre o futebol ou sobre seus patrocinadores, deixando de lado qualquer tema que possa criar polêmica para quem lhes sustenta — salvo raríssimas exceções, claro.
Então, na história, seria possível encontrar 11 titulares para um time com um sugestivo nome de Democracia Fútbol Club?
Foi procurando nomes para um escrete assim que, em 2016, apareceram, numa primeira pesquisa, cinco ou seis jogadores. E não saía disso. Não daria nem para montar um quadro de futsal, já que nem goleiro havia sido encontrado.
O nome do escritor franco-argelino Albert Camus chegou a ser cogitado para a posição, já que na infância e na adolescência havia sido camisa 1. Aliás, falando de futebol ele cunhou uma das frases que resume um pouco o motivo pelo qual o jogo da bola mostra muito como as pessoas são em suas vidas:
O que, finalmente, eu mais sei sobre a moral e as obrigações do homem devo ao futebol.
Assim, para não ficar nesses poucos, quase dois anos de pesquisas tornaram-se necessários. Foram assistidas dezenas de documentários — Les Rebelles du Foot, apresentado pelo francês Eric Cantona, é uma obra imprescindível nesse sentido –, lidos outros tantos de livros — Futebol à Esquerda, do espanhol Quique Peinado, também é basilar. Além de um punhado de entrevistas por telefone, e-mail, WhatsApp e outros meios que a tecnologia nos disponibiliza hoje em dia.
Nesse período foi possível descobrir que um dos pioneiros na luta pela dignidade foi o austríaco Matthias Sindelar. Considerado craque da bola, era conhecido Der Papiermann, o Homem de Papel, pela leveza e rapidez com que jogava.
Ele era a estrela do Wunderteam, o Time Maravilha, como era conhecida a seleção da Áustria dos anos 30. Em 1938, entretanto, o país foi anexado pela Alemanha nazista, e Sindelar chegou a ser chamado para reforçar o escrete alemão.
Deu um jeito, porém, de não jogar pela equipe nazista. Isso porque era abertamente contrário às ideias do regime e contra a ocupação do território da nação na qual vivia. Contam os historiadores que o ato mais rebelde contra os nazistas aconteceu no amistoso que marcou o fim da seleção austríaca.
O resultado da partida teria sido combinado, antes da bola rolar, para acabar em empate. Superior tecnicamente, o Wunderteam dominava o jogo, mas não chutava a gol por conta do tal acordo.
Vinte minutos antes do fim da partida, porém, Sindelar marcou um gol e comemorou muito em frente a oficiais do alto escalão nazista. Por ser conhecido, o craque nada sofreu.
Assim como ele, outros tantos boleiros levantaram a cabeça ante a falta de liberdade e as más condições de trabalho ou de vida em seus países. Também alçaram a voz contra preconceitos e injustiças.
Foram nomes como o lendário meia-atacante francês Raymond Kopaszeski, o Kopa, Bola de Ouro de 1958. Em 1963, ele aderiu a um movimento que reivindicava melhorias trabalhistas para os boleiros gauleses.
Os jogadores de futebol são escravos. Em pleno século 20, o jogador profissional é o único ser humano que pode ser vendido e comprado sem que se peça sua opinião, exagerou, em texto publicado no semanário France Dimanche, em 4 de julho daquele ano.
Ou, então, como os inúmeros espanhóis que encararam a ditadura do generalíssimo Francisco Franco defendendo a identidade basca, catalã ou até mesmo a república e a liberdade, como, por exemplo, Sergio Manzanera e Aitor Aguirre, do Racing Santander, e Josean de la Hoz Hungara, do Real Sociedad.
Ou, então, como Manuel Fernández Fernández, o Pahiño, que passou por Celta de Vigo, Real Madrid, La Coruña e Granada, e é conhecido como o jogador que ria do franquismo. Conta Peinado em Futebol à Esquerda: antes de um amistoso entre Espanha e Suíça, em 1948, um oficial franquista entrou no vestiário e pediu a Pahiño “colhões e espanholismo”. Ao que o jogador gargalhou. De incredulidade e zombaria.
Era seu primeiro jogo pela Fúria — e único pelos próximos sete anos. Marcou um gol — fez outros dois na única outra partida que disputou, depois de ser “perdoado”. Suas atuações, contudo, aos olhos dos verdugos da ditadura espanhola, eram superadas por suas gargalhadas.
Também poderia estar aqui o brasileiro Fernando Antunes Coimbra, o Nando, irmão de Zico, Edu e Antunes e, assim como eles, craque da bola. Só que Nando ia além, no entanto. Estudante de Filosofia, aos 18 anos ele teve a “audácia” de fazer parte, ao lado da irmã Zezé, do Plano Nacional de Alfabetização, sob coordenação do educador Paulo Freire, em 1963.
Com o golpe militar, no ano seguinte, por ter participado dessa empreitada “revolucionária”, Nando foi considerado subversivo e teve de largar a bola após ser escanteado por times no Brasil e em Portugal, país que também vivia sob ditadura. Na volta ao Brasil, chegou a ser preso e passar dois dias e duas noites em pé, com os braços erguidos e com um mosquetão apontado para as costas.
O grupo ainda poderia ter como técnico o escocês Alex Ferguson, apontado como maior doador privado do Labour Party, o partido trabalhista britânico. Também poderia estar no banco o brasileiro João Saldanha, o João Sem Medo. Comunista e jornalista, ele foi o responsável pela montagem da Seleção Brasileira que foi ao México, em 1970, conquistar o tri. Por seu posicionamento político e, principalmente, por não ter papas na língua, acabou substituído por Zagallo.
Vale notar, ainda, que não entraram os nomes que integraram, recentemente, o movimento Bom Senso Futebol Clube, criado em 2013, por 75 jogadores brasileiros. Isso porque a ideia do BSFC era criar um grande acordo, quase como uma concessão ao poder dos cartolas. Além disso, o Bom Senso terminou sem conquistas e com alguns de seus líderes “exportados” para o futebol chinês numa espécie de “para-te quieto”.
Quem está no time?
E, afinal, quem são os 11 escolhidos? Bom, como qualquer lista, haverá certamente nomes que não agradam a algum leitor. Ou quem, aos olhos de quem lê os textos, falte neste selecionado. Alguém também pode perguntar qual foi o critério ou por que não entraram jogadores de outras correntes políticas não à esquerda ou de outras nacionalidades?
É importante frisar que os poucos boleiros de direita encontrados na pesquisa eram defensores declarados do fascismo, como o italiano Paolo di Canio, que comemorava seus gols pelo conservador Lazio com a tradicional saudação fascista. Por serem pouco democráticos, não há razão para convocá-los.
Além disso, o time foi escalado em um formato bastante avançado, uma das primeiras estruturas táticas do futebol, o 2–3–5, no formato que ficou conhecido como WM, criado pelo britânico Herbert Chapman, técnico do Arsenal nos anos 30, e usado pela seleção da Inglaterra na Copa do Mundo de 1950.
Então, entre os “contratados” para o Democracia Fútbol Club estão nomes como o ex-goleiro argentino Claudio Tamburrini, um dos poucos sequestrados pela ditadura de seu país que conseguiu fugir para contar os horrores dos centros clandestinos de tortura. Ou o zagueiro uruguaio Agustín Lucas, que até 2017 dividia o tempo entre as partidas nas séries menores do futebol charrua com a atividade de escritor e ativista.
Claro, há histórias mais conhecidas, como as dos brasileiros Afonsinho, Sócrates e Reinaldo, ou a do chileno Carlos Caszely, que recusou apertar a mão do general Augusto Pinochet, logo após o golpe que derrubou Salvador Allende, no Chile, em 1973.
O critério para a escolha foi quase o mesmo de treinadores ou dirigentes dignos, preferências “técnicas” — o tipo de engajamento, por exemplo. Claro que a qualidade com a bola no pé e a simpatia pela história do perfilado entraram na conta da escolha final. Além da possibilidade de entrevistas ou a quantidade e qualidade de material para pesquisa disponível.
As histórias completas da série estarão em breve disponíveis na reedição de Democracia Fútbol Club pela editora Ludopédio. No livro você encontrará as seguintes histórias:
O camisa 1 argentino que deu uma gambeta na ditadura do seu País.
1 — O goleiro que driblou Jorge Videla
Nosso camisa 2, que, além de ativista, escreve poemas, contos e crônicas.
2 — O zagueiro intelectual
É o mais vitorioso em campo, com título até de Copa do Mundo. Mesmo assim, não deixou de lutar jamais.
3 — Um campeão contra o racismo
O uruguaio que encarou duas ditaduras e ajudou um cuadro chico a ser campeão nacional.
4 — O volante que encarou os verdugos
Pelé, o rei do futebol disse, em 1972: “Homem livre no futebol, só conheço um, Afonsinho”.
5 — O primeiro homem livre no futebol
Outro volante uruguaio bom de luta. Comandou a primeira greve de boleiros da história do futebol e ainda levou seu País a conquistar o mundo no Maracanazo.
6 — El jefe da primeira greve
O gol mais importante da carreira do Rey del Metro Cuadrado foi não apertar a mão de Augusto Pinochet.
7 — Carlos Caszely — O artilheiro da dignidade
Craque do Corinthians e sua democracia no começo dos anos 80 e garoto propaganda das Diretas Já. Precisa mais?
8 — Sócrates Brasileiro Sampaio de Souza Vieira de Oliveira — O doutor da bola e da democracia
Craque com a bola no pé e um desastre nas relações humanas. É, porém, quase um filósofo, além de um bom lutador contra os fascistas.
9 — Érica Cantona — O encrenqueiro politizado
O craque e goleador, foi ceifado dos gramados pelos zagueiros truculentos. Fez questão, porém, de não baixar a voz quando o assunto era ditadura e democracia.
10 — José Reinaldo de Lima — O goleador do punho cerrado
Ele trocou a convocação para a Copa do Mundo de 1958 para lutar pela libertação da Argélia. Depois de independência, voltou a encantar nos gramados franceses.
11 — Rachid Mekhloufi — O atacante da revolução
Foi um revolucionário dentro de campo, fazendo seus times jogarem como uma equipe de basquete — todos marcavam e todos atacavam. Mesmo discreto, também teve sua participação na luta contra a ditadura uruguaia.
Técnico — José Ricardo de León — Um técnico adelantado
A série tem a colaboração de Diego Figueira, na revisão dos textos, e do craque do traço Gonza Rodriguez, nas ilustrações.