Censura no futebol uruguaio

Roberto Jardim
4 min readJun 24, 2022

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POR ROBERTO JARDIM
bobgarden@gmail.com
@bobbgarden

O futebol está sob censura no Uruguai. Bom, se não todo, pelo menos o pequeno e simpático Villa Española, uma espécie de Sankt Pauli montivedano. E tudo porque um grupo de ex-dirigentes do time que hoje joga a segunda divisão fizeram uma série de denúncias ao Ministério da Educação e Cultura.

Por conta disso, a Pasta determinou um interventor que irá convocar eleições e administrá-lo até a posse da nova diretoria. Ele também ficará responsável por remodelar as atuantes redes sociais villeras.

Entra as reclamações dos ex-cartolas, muitas delas estatutárias, estão incluídas, como resume o jornal La Diaria, a “realización de manifestaciones políticas”. O motivo seria o apoio a causas como as do grupo Madres y Familiares de Detenidos Desaparecidos ou contra mudanças legislativas que afetam diretamente a população mais pobre do paisito.

Vale frisar que o futebol uruguaio é bem mais posicionado política e socialmente do que o brasileiro. Esse ano, por exemplo, além do Villa, outros clubes e boa parte dos atletas das duas principais divisões participaram dos atos do Mes de la Memoria, que a cada maio lembra a ditadura que comandou a nação com mão de ferro entre 1973 e 1985.

Afinal, que time é esse?

Para quem não conhece, o Club Social y Deportivo Villa Española está localizado entre os bairros Unión e Ituzaingó, em Montevidéu. El Villa é, como dizem os uruguaios, um cuadro chico — ou seja, está ao lado da ampla maioria das equipes do país, com exceção a Nacional e Peñarol.

Ele tem poucas passagens pela Primeira Divisão. A mais recente foi na temporada 2020/2021, quando voltou a cair. Ele se divide muito mais entre a Segunda, da qual tem um título, conquistado em 2001, e a Terceira, onde levantou cinco taças (1973, 1980, 1987, 1996 e 2013/2014).

Seu estádio leva o sugestivo nome de Obdulio Varela. Sugestivo porque, nos últimos anos, o Villero se notabilizou, assim como o capitão do Maracanazo, por abraçar diversas lutas sociais.

Além de jogar no estádio que lembra o fundador do primeiro sindicato de jogadores da América do Sul, o Villa fundou, recentemente, a Cantina Sócrates, um palco para a cultura de barrio. Ali são realizados shows e sarais para artistas da região, entre eles alguns de seus jogadores. Outra proximidade com o camisa 8 do Corinthians, foi o lançamento, neste ano, de um uniforme em homenagem ao Doutor, nas cores do Timão.

Camisete em homenagem a Sócrates

Outra das facetas do Aurirrojo é ir a campo com camisetas relativas a causas que defende. Além disso, este ano, o clube ainda levou às suas arquibancadas familiares de desaparecidos políticos, com retratos dos seus entes queridos, em mais um ato em apoio a Marcha del Silencio, realizada todo dia 20 de maio pelas ruas do país.

Reação e apoio

A decisão do MEC teve resposta imediata da atual direção. O presidente destituído Miguel Romero se comprometeu a colocar em dia as questões estatutárias, como convocação de eleições e apresentação de balanços, segundo relata La Diaria.

Além disso, o periódico lembra que os atos políticos do clube tiveram aval da Associación de Fútbol Uruguya. No ano passado, quando foi a campo pela primeira vez com a camisa alusiva ao Nunca Más, Pablo Decia, membro da Comissão de Disciplina da AUF, afirmou que era uma manifestação em defesa dos direitos humanos e que ela não feria os estatutos da federação.

Ao mesmo tempo, o anúncio de intervenção gerou uma série de reações nas redes sociais, por meios da hashtag #apoyoalvillaespañola. Entre elas, a do professor da Universidad de la República Maximiliano Piedracueva. Ele escreveu no seu Facebook:

Cuánta bajeza intervenir a una organización social que hace círculos de lectura, que sus jugadores escriben poesía, que tienen ollas populares, huerta orgánica, que plantan un árbol cada vez que hacen un gol. Qué triste que decidan intervenir, suspender a su comisión directiva, ‘depurar’ el padrón de socios, convocar de hecho a una asamblea. Qué patético. Qué insulso, qué vulgar, qué poco ingenioso, qué miedo. Espero y solo espero, que todos quienes cada tanto miramos un partidito de fútbol nos pongamos en campaña para apoyar al Club Social y Deportivo Villa Española, al club que promueve la cultura de barrio y que apuesta a que el fútbol sea otra cosa.

Jogadores plantam árvores a cada gol que marcam

Como recordou Romero a La Diaria, todos os problemas relativos ao estatuto do clube levantados pelos ex-cartolas ocorreram diversas vezes, sem nunca terem sido encaminhadas ao ministério antes. O que leva a crer que o que realmente incomodou os reclamantes foram as ações sociais dos últimos anos.

Enfim, ajudar os necessitados, lutar por justiça, lembrar o passado para que ele não se repita, fomentar a cultura local e a solidariedade incomoda.

E muito!

Mesmo entre os cuadros chicos. Ou, principalmente, por estar entre os pequenos.

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Roberto Jardim

Jornalista, dublê de escritor e pai da Antônia. Tudo isso ao mesmo tempo, não necessariamente nessa ordem. @Democracia_FC