Bahêa de todas as lutas
Cantado pelos torcedores como clube do povo, o Esporte Clube Bahia iniciou recentemente uma luta para consolidar e fazer jus à alcunha. Criou, no começo de 2018, um grupo para pensar e colocar em prática iniciativas que o levem para mais próximo dos seus fãs, representados em sua maioria pela população mais pobre de Salvador e da Bahia. Iniciou, assim, uma caminhada que leva o Tricolor além das quatro linhas.
Surgido há quase um ano e meio, o Núcleo de Ações Afirmativas é o principal responsável pelas campanhas que pregam maior inclusão social e racial e acessibilidade, além de posicionar o clube em defesa da democracia e da liberdade e de se posicionar ativamente em datas como o Dia da Consciência Negra e o Dia Internacional contra a LGBTfobia, entre outras. São iniciativas que tornam o Bahêa a agremiação mais democrática do Brasil.
POR ROBERTO JARDIM
bobgarden@gmail.com
@bobbgarden
Depois de anos afastado da sua torcida mais raiz – distância que aumentou com a elitização a que o futebol vem sendo submetido, por interesses meramente econômicos –, o Esporte Clube Bahia vem se reaproximando da sua base popular. A nova estratégia passa por rever os preços dos ingressos, mas não só isso. A direção que assumiu no começo de 2018 tem mudado políticas internas, promovido a inclusão e formulado comunicação direta e certeira nas redes sociais e nas arquibancadas da Fonte Nova.
Assim, desde janeiro do ano passado, o Esquadrão de Aço, um dos times mais populares do Nordeste, bicampeão brasileiro (1959 e 1988) e 48 vezes campeão baiano, tem chamado a atenção também fora das quatro linhas. Tudo começou com a criação do Núcleo de Ações Afirmativas nos primeiros meses da nova gestão, o que colocou o clube em destaque nas lutas em prol de causas humanistas.
Campanhas com postagens nas redes sociais ou camisetas comemorativas lembram o combate ao racismo, à homofobia e ao machismo ou, por exemplo, a defesa dos povos indígenas, por exemplo. Já são mais de 20 projetos que ganharam o mundo e angariaram a simpatia daqueles torcedores que acreditam que o futebol vai um pouco além do jogo de bola em si e dos pontos nas tabelas de campeonatos.
Ouvindo a torcida
A ideia de engajar o Tricolor em ações inclusivas surgiu na reta final de 2017, quando o empresário da área de educação Guilherme Bellintani, então secretário na gestão de Antônio Carlos Magalhães Neto (Democratas) na prefeitura de Salvador, decidiu concorrer à presidência do Bahia. Na campanha, ouviu torcedores e sócios defenderem que o clube deveria dialogar mais com a torcida e integrar-se mais à comunidade baiana, fazendo valer a fama de clube do povo.
Com a vitória no pleito, já nos primeiros dias de mandato, Guilherme instaurou um programa que, mensalmente, escolhe sócios e torcedores comuns para participarem de debates sobre o clube. O passo seguinte foi a criação do Núcleo, único departamento nesse sentido do futebol brasileiro até então.
O Bahia representa muito da identidade cultural e social do nosso Estado. Por isso, temos obrigação de nos posicionar, frear extremismos e apoiar causas que vão além do campo de jogo, afirmou o presidente em entrevista ao site El País.
A primeira campanha surgiu com menos de um mês de atividade, em 2018, no Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa, em 21 de janeiro. A ação destacou religiões de matriz africana e a história do sincretismo religioso na Bahia. Desde então, o barulho só aumentou nas arquibancadas, nos gramados e nas redes sociais.
Entre as iniciativas estão a criação de uma mascote negra; homenagens a Marielle Franco, no Rio, e Moa do Katendê, em Salvador, assassinados por motivações políticas; a criação do Bolsa Ídolo, para amparar ex-jogadores em dificuldades financeiras; e a Ronda Maria da Penha no estádio da Fonte Nova para proteger as mulheres. O que levou o Bahia ao noticiário nacional, porém, foram as campanhas criadas para o Novembro Negro, no final do ano passado.
Na primeira partida daquele mês, os jogadores entraram em campo estampando em suas camisas nomes históricos como Dandara, Mãe Menininha do Gantois, Zumbi dos Palmares e Moa do Katendê. Na segunda, os homenageados foram artistas, integrantes do movimento negro e ativistas, entre eles o cantor Gilberto Gil, o antropólogo Kabengele Munanga, a ialorixá Mãe Jaciara e a influenciadora Tia Má. Na última foram lembrados 23 ex-jogadores negros que defenderam o clube, como Cláudio Adão, Dadá Maravilha, João Marcelo, Fabão e o camaronês William Andem.
Outro destaque foi a iniciativa intitulada Não Há Impedimento, em combate à discriminação de gênero. A campanha rendeu o troféu Honra ao Mérito da Diversidade Cultural LGBT, além, claro, de protestos homofóbicos de alguns torcedores e de deboches dos rivais. Nada, porém, que abalasse a convicção de enfrentar preconceitos.
Vivemos, afinal, esse clima de Fla-Flu eleitoral e social há algum tempo. Não há como ter unanimidade nas nossas ações. O importante é que a cada ação estamos ganhando o apoio da maioria da torcida, comenta o gerente de Comunicação do Bahia, o jornalista Nelson Barros Neto, 34 anos.
Conforme Nelson, o Núcleo é formado por funcionários do Bahia, professores universitários, líderes de movimentos sociais e coordenadores de ONGs. Claro que nesses tempos de conflito permanente que o país vive, ao abraçar a defesa dos direitos de minorias e das causas sociais, o Bahêa já foi tachado de “esquerdista” e “comunista”. Rótulos rebatidos por Nelson:
Essas pautas não são de esquerda. Defender a educação não é exclusividade da esquerda. Defender as minorias não é exclusividade da esquerda. São todas pautas humanitárias!
Defesa confirmada por Guilherme, ao El País:
Tomamos posição de maneira equilibrada, sem nenhum intuito de partidarizar questões. Nossa linguagem é de convergência.
Mesmo assim, a política, assunto de discussão cada vez mais presente no cotidiano do brasileiro, não ficou de fora. Um exemplo foi o Abril Indígena, em que o clube se posicionou em defesa da demarcação de terras, especialmente após os direitos dos povos originais terem sido colocados em xeque pelo Palácio do Planalto.
Tudo começou com a democratização
Como conta Nelson, a criação do Núcleo e a abertura para ações afirmativas são o amadurecimento do processo de democratização do clube, iniciado com a intervenção do clube, em 2013. Como muitos clubes brasileiros, o Bahia se tornou um clube extremamente popular na sua cidade e no seu Estado. Sem demérito nenhum, assim como o Corinthians, em São Paulo, e o Flamengo, no Rio, o Tricolor tem na população mais pobre a base da sua torcida.
Com os anos, porém, a agremiação, como a maioria dos times brasileiros, foi se afastando da sua torcida. Cartolas e conselheiros endinheirados ganharam espaço ao longo dos anos, tendo como auge desse distanciamento das bases a recente elitização do futebol brasileiro. Durante esse tempo, o clube virou quase um feudo, comandado por duas famílias. No Bahia, esse período de 30 anos foi encerrado em setembro de 2013, por meio de intervenção judicial após fraudes financeiras. A decisão da Justiça foi quase como um grito de independência.
Aqui vale um parêntese: a questão foi lembrada recentemente em outro ato político do clube. Em vídeo compartilhado nas redes sociais em 31 de março, véspera do aniversário do Golpe Civil-Militar de 1964, o Núcleo destacava as mudanças internas no clube depois de destituídas as famílias que dominaram os cargos de poder durante três décadas. O recado final foi claro: “De Democracia a gente entende. Hoje e sempre: #NuncaMais”.
Assim, depois desse período sem eleições diretas, os sócios puderam voltar a escolher um presidente. Na sequência, a modernização do estatuto se tornou prioridade. Dessa forma, o Bahêa passou a atender às reivindicações de grupos de torcedores, como a Frente Esquadrão Popular, que lutam por ingressos mais baratos e maior diversificação em posições de destaques. Negros e mulheres, por exemplo, ainda são poucos no Conselho Deliberativo.
Esse processo de democratização culminou com a eleição de Guilherme e, de pronto, com a criação do Núcleo. A mudança, porém, ainda está no começo. Guilherme é o primeiro a reconhecer que a caminhada é longa. Para ele e sua diretoria, o Tricolor ainda precisa aprimorar os mecanismos democráticos para mudar essa realidade nos próximos anos:
Buscamos transformação real, não de fachada. Com a manutenção das políticas inclusivas, o Bahia terá mais diversidade no Conselho e na diretoria, disse ao El País.
É consenso no clube que as campanhas ganham atenção também por conta dos resultados em campo, com as conquistas recentes da Copa do Nordeste e do Campeonato Baiano, somadas às duas temporadas seguidas na Série A.
Ao El País, Guilherme comentou:
A grande lição do Bahia é provar que democracia combina com resultado em campo. Não promovemos inclusão e ações sociais por marketing, mas por acreditar que o futebol pode dar sua contribuição para melhorar a sociedade.
Todos têm consciência, porém, de que se os resultados fossem ruins, surgiria pressão contra as campanhas. Até o técnico Roger Machado, único negro à frente de uma equipe no Brasileirão, assumiu a necessidade de manter as boas campanhas no Nacional e na Copa do Brasil como forma de incentivar a manutenção das propostas do Núcleo.
Roger já brincou comigo que estamos colocando um peso a mais nas suas costas. Ele apoia as iniciativas e disse que os resultados do time podem ajudar na divulgação, conta Nelson.
Em recente entrevista ao jornal Folha de S. Paulo, Roger comentou:
O preconceito no futebol é como o preconceito no Brasil, ele existe, mas é velado. E é tanto relacionado à questão da raça como da classe social.
Até o uniforme é diferente
Nos negócios, o Bahia também vem inovando. Recentemente, rompeu o contrato com a marca Umbro, tradicional fornecedora inglesa de material esportivo, para criar a Esquadrão. Com marca própria, conseguiu estruturar produtos com preços mais acessíveis aos torcedores com menor poder aquisitivo.
Também mudou a modalidade de sócio mais básica. Com o programa De Bermuda e Camiseta, o acesso privilegiado à Fonte Nova ficou mais barato. O plano, que antes custava R$ 90, passou para R$ 45. Mais uma jogada na tentativa de se reaproximar do torcedor mais popular.
As ações afirmativas, somadas, é claro, aos resultados em campo e ao engajamento da torcida, têm influência direta no caixa do clube. Reportagem da revista Carta Capital contabiliza que, em 2017, o Bahia teve uma receita de R$ 95 milhões. Em 2018, o valor passou para R$ 136 milhões. A previsão é de que 2019 possa chegar aos R$ 160 milhões.
À revista, Guilherme afirma que a aproximação dos torcedores, do respeito às diferenças e das ações concretas pode ser definida por um ciclo: quanto mais investimento, mais futebol, mais dinheiro, e mais torcida engajada. E assim, a calculadora do Bahia tem mostrado, pelo menos até agora, que o futebol foi, é e sempre será muito mais do que apenas um jogo de bola.
Essa reportagem faz parte da iniciativa de manter o projeto Democracia Fútbol Club na ativa.
Queremos ir atrás de histórias de jogadores e técnicos, times e clubes, torcedores e torcidas.
Afinal, como disse o técnico uruguaio Óscar Tabárez, o futebol é uma excelente desculpa para falarmos de outros assuntos.