Bahêa de todas as lutas

Roberto Jardim
8 min readJul 16, 2019

--

Cantado pelos torcedores como clube do povo, o Esporte Clube Bahia iniciou recentemente uma luta para consolidar e fazer jus à alcunha. Criou, no começo de 2018, um grupo para pensar e colocar em prática iniciativas que o levem para mais próximo dos seus fãs, representados em sua maioria pela população mais pobre de Salvador e da Bahia. Iniciou, assim, uma caminhada que leva o Tricolor além das quatro linhas.

Surgido há quase um ano e meio, o Núcleo de Ações Afirmativas é o principal responsável pelas campanhas que pregam maior inclusão social e racial e acessibilidade, além de posicionar o clube em defesa da democracia e da liberdade e de se posicionar ativamente em datas como o Dia da Consciência Negra e o Dia Internacional contra a LGBTfobia, entre outras. São iniciativas que tornam o Bahêa a agremiação mais democrática do Brasil.

POR ROBERTO JARDIM
bobgarden@gmail.com
@bobbgarden

Depois de anos afastado da sua torcida mais raiz – distância que aumentou com a elitização a que o futebol vem sendo submetido, por interesses meramente econômicos –, o Esporte Clube Bahia vem se reaproximando da sua base popular. A nova estratégia passa por rever os preços dos ingressos, mas não só isso. A direção que assumiu no começo de 2018 tem mudado políticas internas, promovido a inclusão e formulado comunicação direta e certeira nas redes sociais e nas arquibancadas da Fonte Nova.

Assim, desde janeiro do ano passado, o Esquadrão de Aço, um dos times mais populares do Nordeste, bicampeão brasileiro (1959 e 1988) e 48 vezes campeão baiano, tem chamado a atenção também fora das quatro linhas. Tudo começou com a criação do Núcleo de Ações Afirmativas nos primeiros meses da nova gestão, o que colocou o clube em destaque nas lutas em prol de causas humanistas.

Campanhas com postagens nas redes sociais ou camisetas comemorativas lembram o combate ao racismo, à homofobia e ao machismo ou, por exemplo, a defesa dos povos indígenas, por exemplo. Já são mais de 20 projetos que ganharam o mundo e angariaram a simpatia daqueles torcedores que acreditam que o futebol vai um pouco além do jogo de bola em si e dos pontos nas tabelas de campeonatos.

Ouvindo a torcida

A ideia de engajar o Tricolor em ações inclusivas surgiu na reta final de 2017, quando o empresário da área de educação Guilherme Bellintani, então secretário na gestão de Antônio Carlos Magalhães Neto (Democratas) na prefeitura de Salvador, decidiu concorrer à presidência do Bahia. Na campanha, ouviu torcedores e sócios defenderem que o clube deveria dialogar mais com a torcida e integrar-se mais à comunidade baiana, fazendo valer a fama de clube do povo.

Com a vitória no pleito, já nos primeiros dias de mandato, Guilherme instaurou um programa que, mensalmente, escolhe sócios e torcedores comuns para participarem de debates sobre o clube. O passo seguinte foi a criação do Núcleo, único departamento nesse sentido do futebol brasileiro até então.

O Bahia representa muito da identidade cultural e social do nosso Estado. Por isso, temos obrigação de nos posicionar, frear extremismos e apoiar causas que vão além do campo de jogo, afirmou o presidente em entrevista ao site El País.

A primeira campanha surgiu com menos de um mês de atividade, em 2018, no Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa, em 21 de janeiro. A ação destacou religiões de matriz africana e a história do sincretismo religioso na Bahia. Desde então, o barulho só aumentou nas arquibancadas, nos gramados e nas redes sociais.

Entre as iniciativas estão a criação de uma mascote negra; homenagens a Marielle Franco, no Rio, e Moa do Katendê, em Salvador, assassinados por motivações políticas; a criação do Bolsa Ídolo, para amparar ex-jogadores em dificuldades financeiras; e a Ronda Maria da Penha no estádio da Fonte Nova para proteger as mulheres. O que levou o Bahia ao noticiário nacional, porém, foram as campanhas criadas para o Novembro Negro, no final do ano passado.

#Medeixetorcer alçou voz contra o assédio nos estádios

Na primeira partida daquele mês, os jogadores entraram em campo estampando em suas camisas nomes históricos como Dandara, Mãe Menininha do Gantois, Zumbi dos Palmares e Moa do Katendê. Na segunda, os homenageados foram artistas, integrantes do movimento negro e ativistas, entre eles o cantor Gilberto Gil, o antropólogo Kabengele Munanga, a ialorixá Mãe Jaciara e a influenciadora Tia Má. Na última foram lembrados 23 ex-jogadores negros que defenderam o clube, como Cláudio Adão, Dadá Maravilha, João Marcelo, Fabão e o camaronês William Andem.

Numeração das camisetas homenagearam heróis negros em novembro de 2018

Outro destaque foi a iniciativa intitulada Não Há Impedimento, em combate à discriminação de gênero. A campanha rendeu o troféu Honra ao Mérito da Diversidade Cultural LGBT, além, claro, de protestos homofóbicos de alguns torcedores e de deboches dos rivais. Nada, porém, que abalasse a convicção de enfrentar preconceitos.

Vivemos, afinal, esse clima de Fla-Flu eleitoral e social há algum tempo. Não há como ter unanimidade nas nossas ações. O importante é que a cada ação estamos ganhando o apoio da maioria da torcida, comenta o gerente de Comunicação do Bahia, o jornalista Nelson Barros Neto, 34 anos.

Conforme Nelson, o Núcleo é formado por funcionários do Bahia, professores universitários, líderes de movimentos sociais e coordenadores de ONGs. Claro que nesses tempos de conflito permanente que o país vive, ao abraçar a defesa dos direitos de minorias e das causas sociais, o Bahêa já foi tachado de “esquerdista” e “comunista”. Rótulos rebatidos por Nelson:

Essas pautas não são de esquerda. Defender a educação não é exclusividade da esquerda. Defender as minorias não é exclusividade da esquerda. São todas pautas humanitárias!

Defesa confirmada por Guilherme, ao El País:

Tomamos posição de maneira equilibrada, sem nenhum intuito de partidarizar questões. Nossa linguagem é de convergência.

Mesmo assim, a política, assunto de discussão cada vez mais presente no cotidiano do brasileiro, não ficou de fora. Um exemplo foi o Abril Indígena, em que o clube se posicionou em defesa da demarcação de terras, especialmente após os direitos dos povos originais terem sido colocados em xeque pelo Palácio do Planalto.

Ações do Abril Indígena (acima e abaixo) lembraram personagens mais uma vez

Tudo começou com a democratização

Como conta Nelson, a criação do Núcleo e a abertura para ações afirmativas são o amadurecimento do processo de democratização do clube, iniciado com a intervenção do clube, em 2013. Como muitos clubes brasileiros, o Bahia se tornou um clube extremamente popular na sua cidade e no seu Estado. Sem demérito nenhum, assim como o Corinthians, em São Paulo, e o Flamengo, no Rio, o Tricolor tem na população mais pobre a base da sua torcida.

Com os anos, porém, a agremiação, como a maioria dos times brasileiros, foi se afastando da sua torcida. Cartolas e conselheiros endinheirados ganharam espaço ao longo dos anos, tendo como auge desse distanciamento das bases a recente elitização do futebol brasileiro. Durante esse tempo, o clube virou quase um feudo, comandado por duas famílias. No Bahia, esse período de 30 anos foi encerrado em setembro de 2013, por meio de intervenção judicial após fraudes financeiras. A decisão da Justiça foi quase como um grito de independência.

Aqui vale um parêntese: a questão foi lembrada recentemente em outro ato político do clube. Em vídeo compartilhado nas redes sociais em 31 de março, véspera do aniversário do Golpe Civil-Militar de 1964, o Núcleo destacava as mudanças internas no clube depois de destituídas as famílias que dominaram os cargos de poder durante três décadas. O recado final foi claro: “De Democracia a gente entende. Hoje e sempre: #NuncaMais”.

Assim, depois desse período sem eleições diretas, os sócios puderam voltar a escolher um presidente. Na sequência, a modernização do estatuto se tornou prioridade. Dessa forma, o Bahêa passou a atender às reivindicações de grupos de torcedores, como a Frente Esquadrão Popular, que lutam por ingressos mais baratos e maior diversificação em posições de destaques. Negros e mulheres, por exemplo, ainda são poucos no Conselho Deliberativo.

Esse processo de democratização culminou com a eleição de Guilherme e, de pronto, com a criação do Núcleo. A mudança, porém, ainda está no começo. Guilherme é o primeiro a reconhecer que a caminhada é longa. Para ele e sua diretoria, o Tricolor ainda precisa aprimorar os mecanismos democráticos para mudar essa realidade nos próximos anos:

Buscamos transformação real, não de fachada. Com a manutenção das políticas inclusivas, o Bahia terá mais diversidade no Conselho e na diretoria, disse ao El País.

É consenso no clube que as campanhas ganham atenção também por conta dos resultados em campo, com as conquistas recentes da Copa do Nordeste e do Campeonato Baiano, somadas às duas temporadas seguidas na Série A.

Ao El País, Guilherme comentou:

A grande lição do Bahia é provar que democracia combina com resultado em campo. Não promovemos inclusão e ações sociais por marketing, mas por acreditar que o futebol pode dar sua contribuição para melhorar a sociedade.

Todos têm consciência, porém, de que se os resultados fossem ruins, surgiria pressão contra as campanhas. Até o técnico Roger Machado, único negro à frente de uma equipe no Brasileirão, assumiu a necessidade de manter as boas campanhas no Nacional e na Copa do Brasil como forma de incentivar a manutenção das propostas do Núcleo.

Roger já brincou comigo que estamos colocando um peso a mais nas suas costas. Ele apoia as iniciativas e disse que os resultados do time podem ajudar na divulgação, conta Nelson.

Em recente entrevista ao jornal Folha de S. Paulo, Roger comentou:

O preconceito no futebol é como o preconceito no Brasil, ele existe, mas é velado. E é tanto relacionado à questão da raça como da classe social.

Até o uniforme é diferente

Nos negócios, o Bahia também vem inovando. Recentemente, rompeu o contrato com a marca Umbro, tradicional fornecedora inglesa de material esportivo, para criar a Esquadrão. Com marca própria, conseguiu estruturar produtos com preços mais acessíveis aos torcedores com menor poder aquisitivo.

Também mudou a modalidade de sócio mais básica. Com o programa De Bermuda e Camiseta, o acesso privilegiado à Fonte Nova ficou mais barato. O plano, que antes custava R$ 90, passou para R$ 45. Mais uma jogada na tentativa de se reaproximar do torcedor mais popular.

As ações afirmativas, somadas, é claro, aos resultados em campo e ao engajamento da torcida, têm influência direta no caixa do clube. Reportagem da revista Carta Capital contabiliza que, em 2017, o Bahia teve uma receita de R$ 95 milhões. Em 2018, o valor passou para R$ 136 milhões. A previsão é de que 2019 possa chegar aos R$ 160 milhões.

À revista, Guilherme afirma que a aproximação dos torcedores, do respeito às diferenças e das ações concretas pode ser definida por um ciclo: quanto mais investimento, mais futebol, mais dinheiro, e mais torcida engajada. E assim, a calculadora do Bahia tem mostrado, pelo menos até agora, que o futebol foi, é e sempre será muito mais do que apenas um jogo de bola.

Essa reportagem faz parte da iniciativa de manter o projeto Democracia Fútbol Club na ativa.

Queremos ir atrás de histórias de jogadores e técnicos, times e clubes, torcedores e torcidas.

Afinal, como disse o técnico uruguaio Óscar Tabárez, o futebol é uma excelente desculpa para falarmos de outros assuntos.

--

--

Roberto Jardim
Roberto Jardim

Written by Roberto Jardim

Jornalista, dublê de escritor e pai da Antônia. Tudo isso ao mesmo tempo, não necessariamente nessa ordem. @Democracia_FC

No responses yet