As Copas de Médici

Roberto Jardim
9 min readDec 4, 2021

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O capita Carlos Alberto Torres e o ditador

Quem é mais velho lembra de uma máxima dos tempos da ditadura, de que “futebol, política e religião não se discute”. Costumo falar que tanto não discutimos esses três temas que a Seleção Brasileira tomou 7 a 1 para a Alemanha em uma Copa disputada por aqui; o Brasil voltou a namorar com o totalitarismo; e a intolerância religiosa caminha a passos largos.

Por isso, toda vez que algum trabalho jornalístico ou literário mistura política e futebol, uma tabela criticada por muita gente, inclusive por gente esclarecida, merece espaço e divulgação. Assim, abro espaço aqui para o advogado Fabiano Neme e o historiador Matheus Bellé e seu Condor F.C. — O Uso Político Do Futebol Nas Ditaduras Da América Latina.

Não preciso explicar do que trata a obra, o título já o faz. Recebi o convite para escrever uma apresentação do trabalho de Fabiano, que conheço apenas virtualmente, e Mathues. E ao ler me deparei com histórias que se passaram no Cone Sul — Argentina, Brasil, Chile e Uruguai — e aqui trago um dos capítulos, sobre o nosso país. Espero que curtam.

Ah! O livro ainda está no prelo. Em breve começará a ser vendido online. As informações pelo Instagram do projeto: @deletralivros.

Emilio Garrastazu Médici assumiu a presidência do regime em 1969, já durante a vigência do AI-5 e às vésperas da Copa do Mundo de 1970. Fã de futebol, encontrou no esporte o elemento ideal para desviar o foco brasileiro do uso indiscriminado da violência de Estado, e, para isso, trabalhou muito a sua imagem como alguém próximo à Seleção, seja acompanhando as partidas, seja designando preparadores físicos ligados ao Exército Brasileiro para treinar a equipe. A Copa de 70 no México virou questão de Estado, e foi explorada politicamente pela ditadura.

Médici pretendia usar o futebol como instrumento de união e pacificação nacional, como fundação da ideia de “Brasil Grande”, fomentada pela propaganda institucional do regime. O Brasil precisava estar unido, cantando o hino em uníssono, e todas as vozes dissonantes deveriam ser apagadas. Uma dessas vozes dissonantes era particularmente problemática: João Saldanha, ex-membro do Partido Comunista Brasileiro e treinador da Seleção.

A primeira rusga pública entre os dois surgiu com a não convocação do jogador Dario, do Atlético-MG, que Médici gostaria de ver vestindo a Canarinho. Essa insatisfação presidencial chegou aos ouvidos de Saldanha, que não se preocupou em ser discreto, muito menos diplomático, como lembrou o treinador em entrevista para o programa Roda Viva, em 1987:

Eu e o presidente, e o presidente e eu, temos muitas coisas em comum. Somos gaúchos, somos gremistas, gostamos de futebol, e nem eu escalo o ministério, nem o presidente escala o time.

Além disso, os militares se preocupavam com os rumores de que Saldanha aproveitava as viagens da Seleção para levar para o exterior documentos que comprovavam o terrorismo de Estado praticado pela ditadura. Saldanha não demorou a ser substituído pelo discreto Zagallo, que tratou de despolitizar a Seleção e adequar o time ao modelo militar, ordenado e disciplinado. Essa disciplina também se mostrou na obediência do novo treinador em convocar Dario, o favorito do presidente — mesmo que passasse a Copa inteira sem entrar em campo.

Em paralelo a tudo isso, o Brasil estava no auge da linha dura do regime, com a perseguição intensa de qualquer tipo de resistência, em especial aos grupos de esquerda que optaram pela luta armada. Marighella já tinha sido assassinado pelo Dops e o massacre do Araguaia estava em andamento. Mas essas notícias terríveis encontravam ouvidos desinteressados e anestesiados pelo “milagre econômico”. O objetivo da ditadura de demonstrar que o projeto de país criado pelos tecnocratas que estavam à frente do governo estava dando certo. O crescimento econômico não só escondia investimentos estrangeiros com altos juros, mas também escondia porões tomados por presos políticos e militares torturadores.

Dentro do contexto de milagre econômico, vinha o forte desenvolvimento nacional, com a expectativa de, pela primeira vez, se poder assistir aos jogos ao vivo pela televisão. E a Copa do Mundo era a cereja do bolo: “solidariedade também é juntar-se às paixões da alma popular. E, nas asas dessa paixão, meu Governo se empenhou para que trouxéssemos o México à plateia de todos os lares do Brasil.”, dizia a propaganda do regime.

Médici usava a Seleção para se colocar não como um ditador, não como o responsável por um dos períodos mais terríveis da história brasileira, mas para se apresentar como um torcedor comum, movido pela mesma paixão pelo futebol que qualquer outra pessoa. O futebol se tornou uma ferramenta para humanizá-lo, e a Copa era o veículo de comunicação entre o regime e a sociedade, que fingia um diálogo com cada brasileiro quando, na verdade, criava uma comunicação unilateral e mentirosa, de cima para baixo, do ditador para o povo. Um verdadeiro circo foi montado para a cerimônia de despedida dos jogadores que iam para o México, inclusive com o presidente aparecendo na TV fazendo embaixadinhas, tudo milimetricamente planejado e amplamente divulgado com o intuito de associar a imagem da Seleção à imagem do regime e à do ditador.

A mídia divulgou exaustivamente a rotina da Seleção no México, destacando a disciplina militar, o esforço e o trabalho sério. Tudo isso para vincular a vitória ao modelo de sociedade que o regime impunha, dentro do pensamento militar. A espontaneidade do estilo brasileiro de jogar era substituída pela disciplina e aplicação, e isso contava com a colaboração da imprensa nacional da época, que dizia que “é preciso mudar a mentalidade do jogador brasileiro”. O fracasso da Copa de 66 ainda assombrava o futebol nacional, em que os grandes culpados encontrados eram a falta de organização, o excesso de jogadores convocados na fase de preparação e a indecisão da comissão técnica na escalação do time titular. Isso não poderia se repetir em 1970. O planejamento e o trabalho sério eram apresentados como o caminho para a vitória.

A máquina de propaganda do regime usou inclusive o sequestro de um embaixador alemão para forjar um ambiente de desconforto na Seleção, dizendo que os jogadores, já no México, ficaram tão atordoados com a violência dos “comunistas subversivos” que isso poderia afetar o desempenho em campo. De uma hora para a outra, a oposição à ditadura passou a representar um “risco” para a conquista da Copa.

A mídia, comprometida com a ideologia militar, repetia chavões consagrados pelo regime e os aplicava ao futebol: disciplina, concentração, preparação física e obediência tática. Os jogadores eram soldados e o jogo era uma guerra. As reportagens, ao invés de exaltar Pelé e Tostão, preferiam destacar a disciplina e dedicação, bem como o treinamento físico empregado pela comissão técnica. A militarização da comissão técnica tirou o espaço do individualismo, da indisciplina e de outros comportamentos incompatíveis com a imagem de jogador-soldado. Os dias do drible estavam dando lugar aos dias da obediência tática.

A retórica da ditadura apresentou o tricampeonato mundial em 1970 como um êxito do modelo de cidadão pensado pelo regime e que teria sido abraçado incondicionalmente pelos jogadores. Que a vitória da Seleção no México era a vitória do Brasil, do povo unido, cantando em uníssono com o presidente-torcedor-cidadão comum. Os porões do Dops, cada vez mais cheios e com o chão cada vez mais sujo de sangue, era só um detalhe que, naquele momento, já não importava mais. O que importava era o Brasil, a taça Jules Rimet, a televisão transmitindo ao vivo, o carro novo na garagem. E o brasileiro seguia sendo guiado nessa direção, como um obediente cão levado pela coleira.

A recepção da Seleção no Palácio da Alvorada foi única. Os portões foram abertos e o povo foi convidado a entrar, participando da festa e celebrando não só a conquista do tricampeonato, mas também a pacificação nacional. Foi o auge do casamento entre o regime e a sociedade.

O sucesso da campanha de consenso e integração nacional através da Seleção abriu o caminho para o primeiro Campeonato Brasileiro, em 1971. O uso político do futebol ficou escancarado pela escalada de clubes participantes do campeonato: em 71 foram 20 clubes, em 73 foram 40, em 76 foram 54, em 78 foram 74 e, em 1979, foram 94 clubes. Foi essa escalada de clubes que fez surgir o jargão “onde a Arena vai mal, um time no nacional, onde a Arena vai bem, um time também”.

A TAÇA INDEPENDÊNCIA

Para Médici isso não bastava, porque a vitória na Copa de 70 havia sido longe, no exterior. Ele queria trazer a Copa do Mundo, ou algo semelhante, para o Brasil. Foi quando surgiu a ideia de aproveitar os 150 da Independência em 1972 para realizar a Taça Independência, uma mini Copa do Mundo em solo brasileiro.

Mas o que era para ser a pacificação definitiva do povo com o regime através do futebol se tornou um motivo de ruptura, e essa ruptura tinha nome: Everaldo, lateral esquerdo do Grêmio e único representante gaúcho no time tricampeão mundial, ficou de fora da convocação para a Taça Independência. Como forma de apaziguar os ânimos gaúchos, a Federação Gaúcha de Futebol propôs um amistoso, no Estádio Beira-rio, entre a Seleção Brasileira e a Seleção Gaúcha, esta contando com a figura de Everaldo.

Mas o anúncio do jogo não causou o efeito desejado, os gaúchos continuavam indignados com a ausência de Everaldo: “joguemos contra o time de Zagallo, ganhemos dele se possível. Mas continuemos, dignamente, altivamente, a exigir que sejamos representados na Seleção.”, publicou o jornal Folha da Manhã. O regime, através do treinador Zagallo, criticou fortemente a Seleção Gaúcha por ter como treinador Aparício Viana e Silva, considerado um “desprestígio para a classe dos treinadores de futebol”. Essa posição do regime com relação ao treinador dos gaúchos tinha motivos que transcendiam o futebol: ele era muito amigo de João Saldanha, tendo inclusive trabalhado como olheiro do treinador nos anos em que Saldanha esteve à frente da Canarinho.

A guerra entre as seleções envolveu também as imprensas. Enquanto a imprensa do centro do país antecipava que os jogadores brasileiros poderiam vir a sofrer hostilidades e agressões dentro e fora de campo, a imprensa gaúcha ironizava: um “arranhão mais profundo numa das canelas tão preciosas da moçada da CBD” representava verdadeira “falta de brasilidade”.

A questão identitária do Rio Grande do Sul, enquanto Estado castelhano, superava a histórica rivalidade Grenal. Jogadores de Internacional e Grêmio estavam unidos contra o time da CDB: “vamos jogar pra ganhar mesmo”, dizia Claudiomiro, centroavante colorado. O clima de guerra estimulado pela imprensa afastou qualquer possibilidade da partida ser “apenas um jogo”. O que se viu foi um Estado inteiro mobilizado contra o resto do país.

O estádio Beira-Rio estava completamente lotado, com 80.000 pessoas no palco de uma disputa histórica. Bandeiras do Brasil eram rasgadas e queimadas, com as cores verde-amarelo-vermelho da bandeira rio-grandense dominando o ambiente.

As duas equipes entraram em campo alinhadas, levando uma bandeira do Brasil, ao som do hino nacional, consideravelmente abafado pelas vaias vindas da arquibancada. Com os torcedores de pé, vaiando, os portões do Gigante foram abertos e mais 30.000 pessoas entraram no já lotado estádio. Durante a partida, mais vaias, sempre que um jogador Canarinho tocava na bola. Era como se o jogo fosse realizado fora de casa para a Seleção Brasileira.

O jogo acabou 3x3, resultado que foi comemorado pelos gaúchos. O plano de usar o “amistoso” para selar a paz entre o Rio Grande do Sul e o resto do Brasil foi por água abaixo: o que se concluiu foi que o “time dos esquecidos” era capaz de fazer frente à poderosa Seleção Brasileira.

O clima de rivalidade criado com os gaúchos não afetou a realização do campeonato planejado por Médici e Havelange para cimentar o consenso ao redor do regime, levando a Seleção Brasileira a jogar por todo o país, contra as grandes seleções do resto do mundo. Mas, ainda assim, nem tudo estava saindo como planejado pelos militares.

Para a surpresa de todos, o início do ano de 1972 revelou uma rejeição em massa das seleções convidadas, que anunciavam, uma depois da outra, o cancelamento da participação no campeonato: Inglaterra, Alemanha, Itália, Espanha e México, todas confirmadas, deram os mais diversos motivos para não comparecer ao evento brasileiro.

Havelange usou a sua influência para convidar outras seleções menos prestigiadas, como a Holanda, Áustria e Bélgica, mas todas recusaram. No fim, as seleções europeias que de fato vieram ao Brasil para a competição foram França, Portugal, Irlanda, Iugoslávia, Escócia, Tchecoeslováquia e a União Soviética. O que era para ser um evento para exibir a supremacia tática da Seleção Brasileira estava se tornando um fiasco.

Abílio de Almeida, diretor de assuntos internacionais da CBD, apesar de rejeitar a expressão “boicote”, deu a entender que sabia da existência de alguma força oculta agindo nos bastidores que motivaram a recusa da participação das seleções mais prestigiadas da Europa. Com a participação de seleções incapazes de fazer frente à Canarinho, o campeonato foi tranquilo, e a Seleção Brasileira se sagrou campeã após ganhar de 1x0 na final disputada contra Portugal.

Em 1974, às vésperas da Copa da Alemanha Ocidental, Médici deixou o comando do regime, sendo substituído por Ernesto Geisel. A Seleção, já sem Pelé e Tostão, fez uma Copa muito ruim, sendo desclassificada na segunda fase da competição, e perdendo, ainda, a disputa do terceiro lugar para a Polônia. Aparentemente, o futebol não era o forte de Geisel.

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Written by Roberto Jardim

Jornalista, dublê de escritor e pai da Antônia. Tudo isso ao mesmo tempo, não necessariamente nessa ordem. @Democracia_FC

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