A única derrota do Condor

Roberto Jardim
20 min readNov 17, 2018
Lilian e Universindo em 1978

Há exatos 40 anos, em meados de novembro de 1978, a Operação Condor — cooperação repressiva das ditaduras instaladas em Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Paraguai e Uruguai — conhecia sua única derrota. A ação, que iniciou como mais um sucesso da colaboração internacional, com a captura de um casal e duas crianças uruguaias em Porto Alegre, começou a virar quando Lilian Celiberti decidiu tentar revelar seu sequestro, do seu companheiro de luta e dos seus filhos. A virada definitiva veio quando dois jornalistas gaúchos, o repórter Luiz Cláudio Cunha e o fotógrafo JB Scalco, entraram na história.

Você deve estar se perguntando qual a relação de uma história da repressão político, ação conjunta de duas ditaduras, com o futebol, para usarmos termos como derrota, virada… Não é? Além da participação do fotojornalista talentoso e reconhecido nas coberturas esportivas, Scalco, tem muito mais. Então, leia até o fim para entender.

POR ROBERTO JARDIM
bobgarden@gmail.com
@bobbgarden

A história que aqui vamos contar remonta a um final de tarde calorento qualquer, entre novembro e dezembro de 1978. Em um apartamento do bairro Partenon, Zona Leste de Porto Alegre, um menino de oito anos brincava na sala enquanto o pai assistia a um telejornal. Uma das matérias, que contava uma história que envolvia um garoto de apenas nove anos, sua irmã, de três, sua mãe e um homem, todos uruguaios, chamou sua atenção.

O relato da TV tratava do sequestro dos uruguaios Lilian Celiberti e Universindo Díaz, e dos filhos dela, Camilo e Francesca. O quarteto, retratado como uma família, havia sido raptado em um apartamento no bairro Menino Deus, a poucos quilômetros de onde residia o guri que se interessara pela narrativa vinda do tubo de imagem, por agentes de segurança do Brasil e do Uruguai.

Naquele dia, o telejornal frisava que os filhos de Lilian seguiam desaparecidos, e que ela e Universindo estavam presos e incomunicáveis, no Uruguai. A denúncia era feita pela avó das crianças, Lilian Terron, que havia vindo ao Brasil buscar ajuda para solucionar o caso, que começara a ser desvendado dias antes, em 17 de novembro, uma sexta-feira nublada e de chuva fina.

Casou daquele menino de oito anos ter crescido e virado jornalista interessado em resgatar fatos do passado. Assim, em novembro de 2018, ele reencontrou uma das personagens centrais dessa história, aliás, uma das responsáveis por ela ter vindo à tona, para lembrar os 40 anos do caso que ficou conhecido como o sequestro dos uruguaios, única ação da Operação Condor a não dar certo.

Essa é uma história conhecida. Falar sobre ela, me incomoda um pouco. Mas é preciso sempre contar, comenta Lilian Celiberti, no começo da conversa.

Lilian, em Porto Alegre, em 2018

Entrando na militância

Antes de começarmos a história do sequestro, vale voltar um pouco mais no tempo. Onze anos, para ser mais exato. Estamos em 1967, e Lilian Celiberti tinha, então, 16 anos. A garota morava com a família em Montevidéu e cursava Magistério, no segundo ciclo do ensino secundário.

Naquele ano, sua turma passou a fazer excursões por escolas do interior do Uruguai e, nessas viagens, ela tomou conhecimento da enorme diferença social que havia no país. Enquanto crianças e adolescentes como ela, moradoras da Capital, tinham acesso a boas escolas e chance de entrar na universidade — só existiam duas, ambas na principal cidade do país –, o mesmo não se via nas demais cidades.

Para seguir estudando, os adolescentes do Interior tinham que deixar suas casas e ir a Montevidéu. Isso me pareceu muito injusto, lembra.

No ano seguinte, buscando conhecer alternativas para mudar aquela situação, Lilian entrou para o grêmio estudantil da escola onde estudava, o Centro de Estudiantes de Magisterio. Em seguida, se filiou à Federación Anarquista Uruguaya (FAU), passando a trabalhar na busca por melhorias sociais.

Em meio a isso, o Uruguai passava por uma grande transformação política. A morte do presidente Jorge Pacheco Areco, em março de 1972, levou o País a uma guinada repressiva. O vice, Juan María Bordaberry, assumiu o poder, aumentando a pressão contra a oposição e os movimentos sociais. Prisões começaram a ser realizadas, pelos mais diversos motivos. Naquele mesmo ano, Lilian caiu presa pela primeira vez, aos 20 anos.

A polícia política procurava uma companheira de FAU e acabou levando Lilian junto. Como uma lei, aprovada anos antes, permitia a prisão por tempo indeterminado de pessoas que não haviam sido julgadas ainda, ela acabou encarcerada por um ano e meio. Passou por várias prisões, ficando mais tempo em Punta de Rieles, de onde saiu apenas em 1974.

Para libertá-la, o governo uruguaio condicionou sua saída do País. Como o exílio não era permitido em nenhum país latino-americano, aos 22 anos, ela acabou indo morar na Itália, onde passou a trabalhar na causa feminista, se aproximando dos grupos que recém haviam conquistado a legalização do divórcio e estavam em campanha pelo aborto.

Também manteve contato com outros exilados uruguaios, tanto na Itália como em outros países da Europa. Foi assim que ficaram sabendo do golpe civil-militar, perpetrado por Bordaberry em 1º de setembro de 1973. Dos encontros com os compatriotas, acabou se unindo ao Partido por la Victoria del Pueblo (PVP), fundado em Buenos Aires, em 1975. Com o golpe na Argentina, em março de 1976, mais uruguaios chegaram ao Velho Continente.

Eles passaram a organizar reuniões e seminários para discutir a situação do País e uma forma de revelar ao restante do mundo a repressão desenfreada pela qual passava o Uruguai. Assim, em 1977, decidiram criar núcleos no Brasil, que também vivia uma ditadura, mas que começava uma política de abertura gradual, ampla, geral e irrestrita, como se dizia na época.

O objetivo era denunciar a caça desenfreada de opositores, o desaparecimento de presos políticos e a recém-criada Operação Condor.

Não a conhecíamos por esse nome. Mas sabíamos que havia uma cooperação internacional entre as ditaduras da região. Nós a conhecíamos como coordenação repressiva. E um dos objetivos de nossa vinda ao Brasil era denunciar essas ações, recorda.

Dessa forma, Lilian e Universindo Díaz chegavam ao Brasil no começo de 1978.

Entendendo a Condor

Aqui, vale explicar o que foi a Operação Condor. Os grupos opositores aos regimes ditatoriais instalados na América Latina trocavam informações entre si. Assim, em meados dos anos 70 começaram a circular relatos de uma colaboração internacional entre os governos de alguns países. Denominada pelos perseguidos pela repressão de “coordenação repressiva”, a troca de dados sobre exilados entre as forças de segurança desses países era feita de forma clandestina.

Denominada de Operação Condor, a aliança político-militar uniu, nos porões da repressão, as ditaduras de Paraguai (iniciada em 1954), Brasil (1964), Bolívia (1964), Chile (1973), Uruguai (1973) e Argentina (1976). Os integrantes tinham apoio da CIA, a agência de inteligência dos EUA. A Condor foi criada com o objetivo de coordenar a busca, prisão e eliminação de opositores a esses regimes, punindo líderes de esquerda instalados nos países do Cone Sul e, até, em outros continentes.

O idealizador da Operação Condor

A operação tomou forma outubro de 1975, no Chile. No dia 29, o ditador Augusto Pinochet convocou a primeira reunião de trabalho dos setores de inteligência nacional de vários países da América do Sul. A conferência, com participação de representantes das nações citadas aconteceu entre 25 de novembro e 1º de dezembro daquele ano. Um documento, descoberto tempos depois, traçava os fundamentos da cooperação entre os países:

“Los países son agredidos política, económica y militarmente (dentro y fuera de sus fronteras) están combatiento solos y, cuando mucho, com entendimientos bilaterales o simples ‘acuerdos de caballeros’. Para enfrentar esta Guerra Psicopolítica, debemos contar con uma coordinación eficaz, que permita un intercambio oportuno de informaciones y experiencias, además del conocimiento personal entre los jefes responsables por la seguridade”.

Um quadro sobre a repressão política na região, montado pelo jornalista Nilson Mariano, autor dos livros-reportagem As Garras do Condor e Operação Condor — Terrorismo de Estado do Cone Sul, faz uma estimativa sobre o número de mortos e desaparecidos naquela década: 297 no Uruguai, 366 no Brasil, 2 mil no Paraguai, 3.197 no Chile e 38 mil na Argentina.

Já o paraguaio Martín Almada, ex-preso político, descobriu na cidade de Lambaré (Paraguai), em 1992, um conjunto de 60 mil documentos, conhecidos como Arquivos do Terror. O material revela números mais surpreendentes: no total, o saldo da Operação Condor chegaria a 50 mil mortos, 30 mil desaparecidos e 400 mil presos.

Chegando ao Brasil

Assim, no começo de 1978, Lilian chegava ao Brasil. Ela vinha acompanhada de outro uruguaio, Universindo Rodríguez Díaz (falecido em 2 de setembro de 2012), que vivia exilado na Suécia. Os dois entraram no Brasil com passaporte falso.

Naquele momento, não sabíamos se havia alguma lista nas alfândegas, com nossos nomes. Então, o mais seguro, era entrar com documentos falsos, conta.

Primeiro, passaram por São Paulo e Rio de Janeiro, até que a organização decidiu o destino final: Porto Alegre. A cidade foi escolhida por ser mais próxima da fronteira, tanto do Uruguai como da Argentina, onde muitos uruguaios ainda viviam exilados. Eles chegaram à capital do Rio Grande do Sul em agosto. Inicialmente, instalaram-se em um apartamento no bairro Bom Fim, próximo à Redenção, recorda a uruguaia.

Depois, conseguiram um segundo apartamento, localizado no número 621 da rua Botafogo, entre a rua Múcio Teixeira e avenida Getúlio Vargas, no Menino Deus. Quando sentiu segurança, Lilian voltou à Itália para buscar os filhos. No retorno, a família acabou usando os documentos originais.

O condomínio onde Lilian, Universindo, Camilo e Francesca viveram, na rua Botafogo

Na rua calma do bairro da região central de Porto Alegre, o quarteto viveu dias quase normais. Não fossem os constantes telefonemas para São Paulo para informar que tudo estava bem, a rotina era de uma família comum. Mesmo próximo ao final do ano, Camilo e Francesca foram matriculados em uma escola para começarem a ter contato com a Língua Portuguesa.

A rotina se dividia entre afazeres domésticos, passeios e as atividades de contatos. Lilian e Universindo recebiam e repassavam informações sobre presos políticos uruguaios a companheiros em outras cidades e a entidades de defesa dos direitos humanos.

Capturada na rodoviária

Tudo ia bem até o começo de novembro. Naquele mês, Lilian lembra que começou a achar que estava sendo seguida. A desconfiança foi confirmada na manhã do dia 12 de novembro. Naquele domingo, a professora saiu com destino à rodoviária da cidade. Se encontraria com alguns familiares, que passariam por Porto Alegre, vindos de São Paulo e com destino final em Montevidéu.

O encontro não ocorreu. Por volta das 11h30min, ela foi capturada em uma operação policial. A ação era realizada por agentes brasileiros, entre eles o delegado Pedro Seelig (guarde esse nome), e por dois oficiais uruguaios, integrantes da Compañía de Contrainformaciones, unidade do exército uruguaio. Levada ao Palácio da Polícia, sede da Secretaria de Segurança Público do governo do Rio Grande do Sul e onde ficava o Departamento de Ordem Política e Social (DOPS), passou a ser interrogada e torturada.

Eles queriam saber quem e quantos uruguaios mais estavam em Porto Alegre, onde estavam as armas e mais outras coisas. Eles imaginavam que éramos terroristas. Quando disse que estava aqui com meus filhos, os policiais brasileiros ficaram assustados, relata, para, em seguida, lembrar:

O regime uruguaio pintou um quadro no qual éramos terroristas extremamente perigosos, fortemente armados. Não imaginavam que alguém da oposição poderia levar uma vida normal, com os filhos.

Em meio às sessões de tortura e interrogatório, os policiais encontraram, na bolsa de Lilian, um recibo da escola dos filhos e outro com o endereço do apartamento onde ela estava vivendo com Universindo, Camilo e Francesca. Era o que eles precisavam para fechar com chave de ouro a operação.

Falando do trio, vem aí uma das ligações dessa história com o futebol. Eles haviam ficado em casa, onde almoçaram, para, no começo da tarde, irem a uma partida de futebol, no Beira-Rio. Torcedor do Peñarol, Universindo começava a se afeiçoar pelo Inter de Falcão e Cia, mal sabia ele que o então procurador do camisa 5, craque colorado, Reinaldo Salomão, era delegado do DOPS, assim como um conselheiro do clube, Pedro Seelig (olha esse nome aí, de novo).

Universindo era fanático por futebol. Camilo também começava a gostar. Os dois queriam muito ir a um jogo aqui em Porto Alegre. E, naquela tarde, planejavam realizar a vontade, aponta Lilian.

O desejo de ver o Inter em ação pelo hexagonal final do Gauchão daquele ano — o adversário seria o Caxias — foi interrompido pouco depois das 13h30min. No exato momento em que saiam do condomínio na Botafogo, Universindo, Camilo e Francesca deram de cara com as viaturas da polícia. Lilian estava dentro de uma delas.

Ainda na delegacia, notei que eles ficaram surpresos ao saber que Camilo e Francesca estavam comigo. Pareciam não querer a responsabilidade de cuidar de duas crianças. Então, aproveitei esse fato para pedir para ir junto na captura de Universindo, cita Lilian.

Todos foram levados para o Palácio da Polícia, onde as crianças foram entregues aos cuidados da escrivã Faustina Elenira Severino (outro nome a ser guardado). Enquanto isso, Universindo e Lilian passavam por sessões de interrogatório e tortura.

O começo da virada

Naquela mesma noite, por volta das 21h, o quarteto embarcou em uma série de viaturas do DOPS com destino à Fronteira. Foram acompanhados, claro, por agentes brasileiros e dos dois oficiais uruguaios. Lilian viajou ao lado dos filhos. Seriam os últimos instantes deles juntos. Enquanto percorriam a estrada, ela pensava em um jeito de salvar a vida dos quatro.

O grupo chegou na madrugada do dia seguinte. Ao cruzarem a Fronteira, Camilo e Francesca trocaram de veículo. Pelo que contou o menino à Folha de S. Paulo na época, foram levados para uma cidade litorânea:

Ficamos em uma praia. Segundo me disseram era Punta del Este, disse ao diário paulistano no dia 30 de novembro de 1978.

Lilian conta que os dois ficaram duas semanas em local desconhecido. De acordo com ela, em uma das muitas residências clandestinas, usadas exatamente para esconder sequestrados pelo regime. Só depois que a mãe dela veio ao Brasil denunciar o caso, eles foram entregues à família.

Antes de chegar ao Uruguai, Lilian já tinha um plano. Ela pretendia voltar ao Brasil de qualquer jeito. Sabia que apenas em Porto Alegre teria alguma chance de salvar ela, os filhos e Universindo, denunciando o ocorrido. Ela pretendia convencer os agentes a voltar à capital do Rio Grande do Sul. Contaria nos interrogatórios que era aguardada para um encontro, na sexta-feira seguinte, dia 17, no apartamento da Botafogo.

E assim foi feito. Ao descerem do carro, o casal raptado foi direto para salas de interrogatório e tortura, onde o planejado por Lilian começou da dar certo. Era o empate.

O gol da virada

N o mesmo dia 13, Lilian foi levada novamente para Porto Alegre. Claro que acompanhada de agentes uruguaios e brasileiros. Ao chegar a capital gaúcha, passaram a noite no Palácio da Polícia. No dia 14, comandados por Seelig, agentes do DOPS mais os oficiais uruguaios, se transferiam com Lilian para o apartamento do condomínio da rua Botafogo.

Ali, ela foi constantemente interrogada. Novamente sobre o esconderijo de supostas armas e sobre contatos de outros exilados em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul e, até, no Brasil. As sessões eram intercaladas por uma monotonia sem fim. Os agentes até deixaram Lilian sair para fazer compras. Afinal, com os filhos em lugar incerto, tinham certeza de que ela voltaria.

Essa rotina foi quebrada na manhã de quinta, dia 16, quando um telegrama chegou.

Tínhamos códigos de segurança — recorda Lilian — Todos os dias pela manhã, por exemplo, devia telefonar para São Paulo. Como não fazia isso desde segunda, eles tentaram contato dessa forma.

A mensagem dizia “beca outorgada chame Paris” e continha um número para ligação. Lilian chegou a ficar na dúvida se deveria mesmo telefonar, mas viu ali uma chance de concretizar o que havia planejado na viagem entre Porto Alegre e a Fronteira do Uruguai. Um dos oficiais uruguaios, o capitão Eduardo Ferro, achou que era a oportunidade de ganhar mais uma captura para a sua ficha de verdugo.

Os agentes levaram Lilian até o DOPS. Seelig, Ferro e mais homens acompanharam a ligação. A chamada foi rápida, com o interlocutor querendo saber o que havia acontecido. Antes de desligar, porém, Lilian passou um recado: estaria em casa na sexta-feira para encontrar o companheiro de São Paulo às cinco da tarde. Os raptores não sabiam, mas as quatro palavras finais, “às cinco da tarde”, faziam parte dos códigos de segurança do PVP. Era a senha para avisar que as coisas não estavam bem.

Recado recebido e codificado. No mesmo dia, chegou a Hugo Cores, chefe do PVP que estava escondido em São Paulo. Ao perceber o que acontecia, decidiu avisar a imprensa. Procurou uma banca de jornais e comprou um exemplar da revista IstoÉ. Com o telefone da redação em mãos, fez uma ligação, mas ninguém atendeu. Comprou uma Veja, onde achou o contato da sucursal de Porto Alegre.

E assim, o sequestro dos uruguaios, como o caso ficou conhecido, começava a ser revelado. O plano de Lilian dava mais um passo rumo ao êxito.

Outro gol de Lilian

N a manhã daquela sexta-feira, 17 de novembro, o jornalista Luiz Cláudio Cunha, chefe da sucursal da Veja na capital gaúcha, ajudava no fechamento da edição da revista, que chegaria às bancas no final de semana. Ao atender um telefonema, ouviu uma voz tensa, firme, falando em espanhol: “Hay uma pareja uruguaya desaparecida em la calle Botafogo”. O interlocutor deu ainda o endereço completo.

Quando Luiz Cláudio perguntou o que significava “casal desaparecido”, o homem disse “detenidos” e desligou, sem dizer quem estava falando. Ele anotou a mensagem e seguiu nas tarefas. Até que, no começo daquela tarde de chuva fina, Luiz Cláudio, com seu faro jornalístico, decidiu averiguar.

Naquela época, era difícil um bom repórter sair da redação sem a companhia de um fotojornalista. Como o fotógrafo da Veja, Ricardo Chaves, o Kadão, estava em uma pauta no litoral gaúcho, Luiz Cláudio pediu ajuda a JB. Scalco (falecido em 3 de maio de 1983), retratista da Placar, considerado por muitos um dos melhores da cobertura esportiva, apelidado de Van Gogh dos Pampas, tamanha a expressividade das suas fotos.

Luiz Cláudio e Scalco (D), na redação da revista Veja, em 1978

Os dois se dirigiram ao endereço dado no telefonema, apartamento 110 do número 621 da rua Botafogo. O repórter lembra o que aconteceu:

Quando eu bati, a porta se entreabriu e apareceu o rosto de uma mulher morena. Ela tentava comunicar algo, girando os olhos de um lado para o outro. Comecei a falar rápido em espanhol. “Hola, buenas tardes. Nosotros recibimos un teléfono ahora y queremos saber…” Não consegui terminar a frase. Subitamente, ela saiu de cena e a porta se abriu toda.

O jornalista continua:

Descrevo isso no livro (Operação Condor: o Sequestro dos Uruguaios) em detalhes, porque é fundamental para o resto da história. Na porta, fomos recebidos por um negro e um branco, de bigode. O negro com a pistola na cara do Scalco, o outro com a pistola na minha testa. Nos fizeram entrar no apartamento. E, na penumbra, às nossas costas, havia mais uns quatro ou cinco homens, mas que nunca pudemos reconhecer.

O livro de Luiz Cláudio

Os jornalistas não sabiam, até então, que aqueles homens eram agentes da repressão do Brasil e do Uruguai. Os policiais e militares, por seu lado, não sabiam que aquela dupla era de jornalistas. Para surpresa dos verdugos, encontraram com os dois brasileiros apenas uma bolsa com uma máquina fotográfica Nikon. Nisso, Luiz Cláudio se identificou como repórter, da revista Veja, a maior do país, e quis saber o que estava acontecendo. O repórter recorda:

Um deles saiu do apartamento, certamente para pedir instruções.

Quando o homem voltou, anotou os nomes de Luiz Cláudio e Scalco. Ao tentarem entender o que ocorria ali, os jornalistas receberam apenas uma resposta vaga, sendo mandada embora com o pedido de que não falassem nada sobre o que tinha visto. Quando saíram, ainda sob o impacto de terem sido rendidos com pistolas, Luiz Cláudio e Scalco trocaram impressão de que conheciam um dos agentes, o negro. Torcedor do Grêmio, o repórter achava que já o havia visto. Ao que Scalco, de uma memória fotográfica invejável, além de acompanhar futebol profissionalmente, respondeu:

Olha, não sei, mas o sujeito me lembrou o Didi Pedalada, que jogou no Inter.

“Mas que Didi Pedalada?”

Essa foi a pergunta que Luiz Cláudio fez a Scalco. Era, enfim, mais uma ligação do caso ao futebol, talvez a principal. Didi Pedalada era o apelido de Orandir Portassi Lucas. Orandir, ou Didi, ganhou o Pedalada por causa do drible que leva esse nome e imortalizou o atacante Robinho, anos depois, quando surgiu no Santos.

Longe de ter o talento do menino da Vila Belmiro, Didi surgiu no Inter em uma época profícua para o Colorado. Centroavante de ofício, Didi disputava espaço com Claudiomiro, ídolo eterno da torcida alvirrubra que marcou o primeiro gol do Beira-Rio. Acabou deslocado para a ponta-esquerda e, depois, para o banco de reservas. Dali, rodou por Cruzeiro de Porto Alegre, Atlético-PR até encerrar a carreira no México, entre 1974 e 1976.

Ao voltar a Porto Alegre, procurou ajuda dos amigos para conseguir um emprego. O lateral Jorge Andrade, companheiro de Didi no Inter, conhecia um conselheiro do clube que podia arranjar um emprego. Bastante presente no dia-a-dia alvirrubro, esta pessoa era Seelig, o delegado do DOPS, do qual falamos alguns parágrafos antes.

Assim, Didi entrou para a polícia e acabou sendo a falha na defesa da Operação Condor que rendeu a confirmação da virada no caso do sequestro dos uruguaios.

Seelig, ao centro, e Didi, à direita

Mas antes de seguirmos, vale falar um pouco de Seelig. Delegado da Polícia Civil gaúcha, era habitue das arquibancadas do Beira-Rio em dias de jogos. Próximo dos dirigentes, tinha passe livre no vestiário e se vangloriava em público da amizade com Falcão, craque máximo do Inter, representado por seu colega de DOPS, Reinaldo Salomão, também delegado.

Seelig é apontado por muitos como um dos principais nomes da repressão no Rio Grande do Sul, se não o maior. Segundo o ex-repórter da Veja, correspondia ao que Sérgio Paranhos Fleury e Carlos Alberto Brilhante Ustra eram em São Paulo. Era um policial eficaz. Foi o responsável por desbaratar todos os grupos de luta armada em solo gaúcha.

Além disso, o chefe do DOPS era bajulado pela imprensa gaúcha. A participação do delegado na solução de dois sequestros no começo dos anos 1970 fizeram a opinião pública esquecer de um fato ocorrido meses anos. Seelig levou o filho adotivo dele, de 17 anos, para a delegacia. O objetivo era dar um “corretivo” no rapaz, que saiu de lá direto para o hospital, e do hospital saiu morto por afogamento.

Voltemos, então, ao que ocorreu em seguida.

Desfiando a meada

Luiz Cláudio e Scalco seguiram com a pulga atrás da orelha. Como a nova edição da revista Veja sairia apenas no outro final de semana, teriam tempo para apurar a história. Só que Hugo e outros uruguaios ligaram para grandes jornais como Jornal do Brasil e Folha de S. Paulo, que passaram a publicar o caso.

Jornalistas e advogados começaram a pressionar o governo brasileiro por informações. No dia 22, dez dias após o começo do sequestro, por exemplo, o diário paulistano publicava uma reportagem na qual relatava contato com a Polícia Federal, em Brasília. Conforme o diretor de Comunicação Social da instituição na época, Paulo Leite, o rapto do casal e das crianças era “um caso sem a menor importância”. “Paulo Leite acrescentou que o fato é de rotina, ‘uma coisinha boba’, que nem chegou ao conhecimento do diretor-geral do órgão”, publicou o periódico.

O ocorrido naquela sexta seguiu na cabeça de Luiz Cláudio. Não lembrava, porém, da conversa com Scalco sobre o agente negro. Antes da reportagem da Folha, na segunda, dia 20, o repórter começou a apurar, consultando órgãos policiais, que, logicamente, negaram qualquer operação de detenção de estrangeiros ilegais.

A primeira matéria na Veja saiu em 29 de novembro

Por outro lado, a pressão que veio nos dias seguintes levou a ditadura uruguaia a inventar uma versão de que Lilian e Universindo teriam tentado voltar para o país ilegalmente. A verdade começou a ser levantada quando Luiz Cláudio foi a Montevidéu e, com a permissão da família, conversou com Camilo. Pelo relato do garoto, ficava claro que os Celiberti e Universindo haviam passado pelo Palácio da Polícia.

Enquanto isso, no Brasil, um repórter de O Globo mostrou a Scalco uma foto antiga de Didi Pedalada, a imagem, porém, não tinha qualidade e ficava difícil fazer uma comparação. Por outro lado, o fotógrafo Kadão, que fazia parte da Veja e era amigo de Luiz Cláudio, entrou na história. Ao ouvir o relato do repórter, decidiu ajudar. Partiu para a sede de Zero Hora, a poucas quadras do Palácio da Polícia. Inventando que buscava fotos de ex-jogadores do Inter, ele e o repórter da Placar Divino Fonseca chegaram à pasta de Didi Pedalada.

Cópias de fotos feitas, de volta à sucursal da Veja. Luiz Cláudio viu as três ampliações compradas por Kadão e não teve mais dúvidas. Como havia combinado com Scalco de trocar informações sobre qualquer novidade do caso, teve que ir a São Paulo, onde o colega fechava uma reportagem na redação da Placar. Após a conversa, os dois procuraram o diretor de redação da Veja, José Roberto Guzzo, que deu apoio necessário para a dupla finalizar e publicar a reportagem.

A reportagem que começava a desvendar o mistério

Assim, na edição de 27 de dezembro, a revista de maior circulação do País trazia a matéria com o título “Surge o primeiro nome” e uma foto de Didi. O resto da grande imprensa entrou em campo e o caso virou pauta recorrente. Alguns meses depois, já em 1979, os jornalistas da Veja chegaram a outros nomes, como o do policial de bigode, que era João Augusto da Rosa, também integrante da equipe de Seelig. Com a repercussão, em maio daquele ano, a Assembleia Legislativa gaúcha abriu uma CPI para investigar o caso, que logo virou processo na Justiça.

Os agentes do DOPS, João Augusto, Didi, Seelig e Faustina (lembra dela?) tiveram que depor. Aqui vale um relato do livro Sequestro no Cone Sul — o caso Lilian e Universindo, do advogado Omar Ferri. No capítulo 23, ele conta que Faustina acabou morrendo em situação suspeita pouco depois do depoimento, ao qual apareceu acompanhada de um médico da polícia e com um dos olhos com um forte hematoma.

Em maio de 1980, uma nova testemunha apareceu. Um soldado uruguaio, que havia desertado, confirmou a história, detalhou como a operação foi planejada em Montevidéu e citou nominalmente Seelig e Didi. Apesar de o governo brasileiro não classificar o caso como sequestro, o promotor de Justiça Dirceu Pinto denunciou Didi Pedalada, João Augusto, Seelig e Janito Keppler (outro integrante do DOPS). Dos quatro, apenas Didi foi condenado e cumpriu pena.

Estava decretada a primeira e única derrota da Operação Condor. Lilian e Universindo seguiram presos no Uruguai até 1984. Mas saíram vivos — o que não aconteceu com nenhuma outra vítima da cooperação internacional. No ano seguinte, com a redemocratização, entraram na Justiça. Assim como no Brasil, porém, o Uruguai aprovou uma lei de anistia, votada em 1986, praticamente liberando os integrantes da repressão de qualquer pena.

Recentemente, a juíza Mariana Motta reabriu o caso, mas acabou afastada da Justiça Penal uruguaia. Com isso, pediu exoneração e hoje trabalha no Instituto Nacional de Derechos Humanos.

Os sistemas legislativo e judicial trataram de proteger os militares, resume Lilian.

Lilian segue militando. Hoje é responsável pelo Cotidiano Mujer, organização que trabalha com questões de gênero, em Montevidéu. Ela esteve em Porto Alegre em novembro de 2018, para um evento em memória aos 40 anos do sequestro. Mais uma vez não se poupou de falar sobre o caso, afinal, como ela mesma resumiu ao final da entrevista:

É preciso contar e recontar. Já são 40 anos, e existem gerações que não sabem o que foram as ditaduras e que acreditam que a intervenção militar pode ser uma solução. Isso só é possível porque não se conhece a história; não se conhece a verdade; porque se tem ocultado informações.

Essa reportagem faz parte da iniciativa de manter o projeto Democracia Fútbol Club na ativa.

Queremos ir atrás de mais histórias de jogadores e técnicos, de times e clubes, de torcedores e torcidas.

Afinal, como disse o técnico uruguaio Óscar Tabárez, o futebol é uma excelente desculpa para falarmos de outros assuntos.

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Roberto Jardim

Jornalista, dublê de escritor e pai da Antônia. Tudo isso ao mesmo tempo, não necessariamente nessa ordem. @Democracia_FC